É um hábito perverso nas
gestões municipais no Brasil a destruição sistemática de tudo que tiver sido
feito pelo prefeito anterior, que possa lhe dar prestígio. A lógica é tão
perversa que quanto melhor tiver sido a política implementada – e, portanto,
quanto maior a popularidade do político que a criou –, mais radical será sua
destruição.
O novo prefeito de São
Paulo, João Dória, que o PSDB quer construir como uma alternativa à
presidência, está levando essa prática a um extremo que beira a insanidade.
Para introjetar a imagem eleitoreira do “bom gestor”, está simplesmente
promovendo a destruição mais sistemática e irresponsável que se tenha tido
notícia nesta cidade. Nem o pior de seus antecessores havia ousado promover tal
desmonte, prejudicando, obviamente, paulistanas e paulistanos.
Um dos legados mais
importantes da gestão de Fernando Haddad foi sua capacidade de lançar políticas
realmente estruturais, de efeito de longo prazo, que podem não dar muito
resultado eleitoral – pois muitas vezes sua inauguração ou consolidação levam
muito mais do que os quatro anos de mandato – mas são verdadeiramente
transformadoras. Com isso, a cidade de São Paulo, que havia sucumbido ao
desmando e à corrupção na gestão Kassab, estava a duras penas recuperando sua
autoestima, vendo os paulistanos reconquistarem democraticamente o espaço
público.
Dória, pelo contrário, faz
política com factoides, somente pelo potencial eleitoral, pelo impacto
midiático, sem sequer saber se é ou não uma boa política pública, com efeitos
estruturais. Vai limpar rua vestido de Gari às seis da manhã, dirige trator na
destruição da Cracolândia, pinta os grafites de cinza, e vai embora deixando
tudo como está. O que lhe interessa é apenas o retorno midiático dessas ações
teatrais. Até mesmo seu guru FHC reclamou que o novo prefeito se preocupava
mais com as mídias sociais do que em governar de fato a cidade.
A pirotecnia das ações
midiáticas adotadas pelo novo “gestor”, associada ao abandono das políticas
realmente estruturadoras, serve também para dar espaço para outras dinâmicas de
governança, marcadas pelas relações clientelistas, de favor, de mandonismo, de
promiscuidade com os interesses privados. Infelizmente, já é longa a lista do
desmonte de políticas públicas que vinham sendo implementadas por meio de
intensos e ricos processos participativos:
- O Plano Diretor
Estratégico, votado em 2014, premiado pela ONU, e que propõe um projeto para as
próximas décadas de estruturação da cidade por uma lógica mais democrática e
embasada na prioridade ao transporte público em detrimento do carro, assim como
a Lei de Uso e Ocupação do solo, estão sendo revisados, com pouca ou nenhuma
participação, para responder às demandas do mercado imobiliário. Isso é feito
sem disfarce sequer, já que o SECOVI, o sindicato do setor, tem influência e participação
no governo anunciada pelo próprio Prefeito, tendo até “doado” à cidade projetos
urbanísticos. Com que interesses?
- São 54 as obras públicas,
entre creches, escolas, etc., recebidas da gestão passada, que estão
paralisadas na cidade. Como os dois hospitais, em Parelheiros e na Brasilândia,
parados com mais de 70% das obras realizadas, ou conjuntos habitacionais quase prontos,
como o Estevão Baião, na Av. Roberto Marinho, ou ainda os nove CEUs com obras
interrompidas.
- Essa situação não ocorre é
por falta de verba: a gestão anterior deixou R$ 5,5 bi em caixa, dos quais R$
1,8 bi não vinculados, disponíveis para as prioridades que o prefeito quiser, e
reduziu a dívida pública em R$ 50 bi. Porém, a estratégia política é a de
paralisar tudo para retomar no ano que vem, em pleno ano eleitoral, e poder
assim desvincular essas inaugurações da gestão anterior. Segundo o vereador
Nonato, da oposição, após seis meses, o governo congelou gastos e tem em caixa
quase R$ 12 bi, dos quais 8 não-vinculados. Esse dinheiro vem da suspensão de
programas como o Leve Leite para mais de 600 mil crianças, a redução do
transporte escolar gratuito, a suspensão de serviços nas áreas de assistência
social, saúde e educação, da não realização de editais de fomento à cultura na
periferia, e assim por diante. E quem paga por essa “economia” com objetivos
eleitoreiros é a cidade.
- Na área da cultura, o
obscurantismo cultural já se anunciou no primeiro dia de governo, ao vermos a
prefeitura acinzentando os coloridos muros do que queria ser a capital mundial
de arte de rua. Desenhos fomentados e financiados por programas municipais
foram devidamente apagados, substituídos pelo cinza. A cultura é um dos setores
que mais sofre com o desmonte. Ao esvaziamento do Carnaval, marcado por ações
policiais violentas, por restrições de percurso aos blocos de rua, pelo
confinamento dos foliões em (perigosos) espaços cercados, seguiu-se o fiasco da
Virada Cultural, criada por seu correligionário Serra, e cuja característica e
qualidade era a de ser realizada no centro, e que foi alvo de uma
descentralização atabalhoada e esvaziamento de público. Face à denúncia de desmonte
da rede de coletivos de cultura, a resposta foi o destempero do secretário da
pasta, ameaçando agredir fisicamente as suas lideranças.
- O mais cruel e violento
desmonte talvez tenha sido o da política de atendimento à população pobre em
situação de dependência química pela redução de danos, a De Braços Abertos,
internacionalmente premiada, e que vinha obtendo resultados significativos.
Mais de 50% dos beneficiados haviam retomado os vínculos familiares e
conseguido emprego. No início do programa, quase 70% dos quase 500
beneficiários diziam estar o dia todo sob efeito da droga. No fim, eram só 4%.
Mais de 80% fizeram novamente sua documentação pessoal de identidade. Essa
lógica, de atendimento cuidadoso, com acompanhamento médico e social, envolvia
a gestão conjunta de seis secretarias, e é, no mundo, o único caminho que
mostra resultados. Mas, para promover uma mal disfarçada higienização social,
veicular a imagem de enfrentamento do tráfico de drogas e abrir caminho para os
investimentos imobiliários, o novo prefeito lançou mão de violenta ação
policial, destruindo prédios com moradores dentro, e deixando desamparada uma
população extremamente vulnerável, encaminhada para uma “internação
compulsória” que na verdade a deixou sem atendimento.
Essa abordagem de violência
sem ter uma política estruturada por trás resultou no espraiamento dos usuários
pela cidade, na não extinção do tráfico, que se desloca de quarteirão em
quarteirão dando dribles na polícia. Ainda assim, a mesma política parece ter sido
o mote para a invasão violenta da favela do Moinho, algumas semanas depois,
resultando na morte – pouco esclarecida – de um jovem pela polícia.
- No campo da mobilidade
urbana, a volta das altas velocidades nas marginais representou um retrocesso,
na contramão de todas as grandes cidades do mundo (em Londres, o limite é de 30
km/h em boa parte da cidade), que resultou em um aumento de 30% no número de
mortes por atropelamentos no trânsito no primeiro trimestre do ano em relação
ao mesmo período no ano passado. Os acidentes nas Marginais aumentaram nada
menos do que 67%. Se um dos motes mais desonestos da campanha contra Haddad foi
o de "Raddard" em alusão a uma suposta "indústria da multa"
(por exigir que se respeite as leis de trânsito), isso não impediu que Dória
aumentasse o valor das mesmas e com isso arrecadasse 18% a mais em multas no
primeiro trimestre, em relação ao ano passado. Ao mesmo tempo, Dória vem
promovendo o sucateamento – pela interrupção da manutenção – das ciclofaixas,
quando não o seu desfazimento puro e simples. Se a tentativa de terminar com a
abertura aos pedestres da Av. Paulista aos domingos não vingou, tal o sucesso
da iniciativa junto aos paulistanos, em compensação o Programa Ruas Abertas,
que fazia o mesmo nas avenidas principais de cada bairro, abrindo-as ao lazer,
está sendo descontinuado.
- A tudo isso somam-se
outras atitudes condenáveis: o corte da merenda escolar orgânica e
agroecológica, a diminuição do tempo de uso do bilhete único estudantil, a
intenção de cobrar os mortos pelos jazigos nos cemitérios municipais (quando na
gestão anterior viu-se uma inédita e incrível política de recuperação dos
cemitérios como espaços abertos de cultura e memória da cidade), a retirada das
cooperativas de catadores no centro, o fim do premiado programa TransCidadania,
destinado à população transexual, e o recente fechamento, sob alguma
justificativa “técnica”, da boate Alôca, reduto de resistência e ativismo
político do movimento gay.
- Essa ideia de uma cidade
menos humana, menos solidária, menos compreensiva, se espelha no esforço
descomunal para uma mal explicada e promíscua aproximação com o setor privado.
Das "doações" no início do governo, para construir a imagem de que
seria um gestor competente tratando a cidade como se fosse uma empresa, que
ninguém sabe exatamente o qual será o preço a pagar, mas já se verificou que,
no caso dos remédios doados, era uma enganação: foram medicamentos em vias de
vencimento, em troca de dar ao setor mais de 60 milhões de Reais em isenções.
Essa relação promíscua também se escancarou quando se soube que a prefeitura
“facilitou” com informações privilegiadas a concorrência de exclusividade no
Carnaval para a Ambev, que depois “ofereceu-se” para reformar "de
graça" as quadras do Ibirapuera. Com o mercado imobiliário, o Prefeito
aceita projetos urbanos “de graça”, para depois satisfazer aos desejos do setor
nas revisões das leis urbanísticas.
Para coroar esse movimento,
o prefeito conseguiu passar a lei para a privatização do Pacaembu, e tenta a
toque de caixa aprovar aberrações como o direito de vender terrenos públicos de
menos de 10 mil m² (adeus, praças). Todo esse esforço foi obra de uma nova
secretaria (enquanto reduziram-se as secretarias sociais), que recebeu para sua
missão privatista cerca de R$ 30 milhões, retirados de verbas para enchentes e
transporte.
Se o maior ganho da gestão
anterior havia sido a reapropriação, gradual mas muito sólida, da cidade pelos
seus cidadãos, a revalorização dos espaços públicos, das ruas, das praças, das
atividades ao ar livre, das manifestações culturais, da diversidade, da
tolerância, aspectos que fazem uma cidade de verdade, agora é tudo isso que o
novo “gestor da destruição” está, sistematicamente, enterrando. Tudo ao vivo
pelas redes sociais.
Por:
João
Sette Whitaker Ferreira, no site Carta Maior