“Em um artigo publicado em
1944, A república do silêncio, Sartre escreveu que os franceses nunca foram tão
livres quanto no tempo da ocupação alemã. Um chocante e brilhante paradoxo que
só a grande Filosofia, como exercício de pensar fora do senso comum, é capaz de
produzir. Por que os franceses eram livres se todos os direitos haviam sido
aniquilados pelos alemães e não havia qualquer liberdade de expressão? Como se
podia ser livre sob a cerrada opressão do invasor que fiscalizava os gestos
mais triviais do cotidiano?
Porque, dizia Sartre, cada
gesto era um compromisso. A resistência significava uma escolha e, pois, um
exercício de liberdade. Significava não renunciar à construção de sua própria
existência quando os invasores queriam moldá-la, reduzindo-a a objeto passivo e
sem forma.
Em linguagem retórica e
poética Rosa de Luxemburgo disse algo semelhante: quem não se movimenta não
percebe as correntes que o aprisionam.
Sartre era existencialista:
a existência precede a essência. Isto significa que não há algo anterior à
existência que impeça um ser humano de tomar livremente as decisões que
construirão o seu futuro. Isto dá ao humano a plena imputabilidade pelos seus
atos. O que ele faz da sua existência é culpa ou mérito exclusivamente seu. O
que ela é hoje resulta de decisões que tomou no passado, e o que será resultará
das decisões que toma no presente.
A experiência francesa
durante a ocupação alemã guarda certa similitude com o Brasil de hoje. Na
França parte da sociedade (muito maior do que os franceses gostam de admitir)
foi complacente ou colaborou com o invasor que massacrava seu povo e aniquilava
os mais elementares direitos dos franceses. Hoje, parte da sociedade brasileira
assiste inerte, é complacente, apoia ou apoiou usurpadores que vão reduzindo a
pó o pouco de direitos e garantias de um povo já miserável.
Na França colaborava-se por
ser fascista ou filofascista. Por egoísmo social. Por ressentimento. Por ódio
de classe. Para pequenas vinganças privadas, para atingir um inimigo pessoal.
Colaborava-se por ausência de qualquer sentimento de solidariedade social. A
colaboração com o invasor desvelava a mais baixa extração moral. Quanto a nós,
tomo como paradigma uma cena do cotidiano que presenciei dia desses. Duas
mulheres ao meu lado conversavam. Uma disse que seu filho de 13 anos era fã do
Bolsonaro. A outra, algo espantada, faz uma crítica sutil, perguntando se ela
não conversava com o filho sobre política. A resposta: “acho bonito que meu
filho seja politizado nessa idade”. Com isto, quis dizer que não importava de
que modo seu filho estava precocemente se politizando.
Pode-se razoavelmente supor
que ela, mulher, ignore que Bolsonaro disse que há mulheres que merecem ser
estupradas? Que saudou, diante de todo país, em rede nacional de televisão, o
mais célebre torturador da ditadura militar? Que declarou que prefere o filho
morto se ele for homossexual? Como ignorar isso tudo é altamente improvável,
porque seria supor que tal mulher vive em uma bolha impenetrável em plena era
das redes sociais, podemos concluir, com Sartre, que escolheu o sórdido para si
e para seu filho. O que resultará dessa escolha não poderá ser imputado a Deus,
ao destino, aos fatos da natureza ou a qualquer fórmula vaga e estúpida do tipo
“a vida é assim”, mas a ela mesma e a seus pares brancos de classe média que
tem atitudes semelhantes.
Do mesmo modo como a parcela
colaboracionista da sociedade francesa escolheu a opressão do invasor
estrangeiro, parcela da sociedade brasileira escolheu o retrocesso, o
obscurantismo e a selvageria.
Foi em massa às ruas em nome
do combate à corrupção apoiando um processo político liderado por notórios
corruptos.
Regozija-se com o câncer e
com o AVC do adversário politico, demonstrando completa ausência de qualquer
traço de fraternidade e respeito ao próximo.
Suas agruras e dificuldades
econômicas e sociais transformam-se em ódio justamente contra os excluídos e em
apoio às ricas oligarquias que controlam a vida política do país (das quais
julgam-se espelhos), a fórmula clássica do fascismo.
Permanece indiferente,
omissa ou dá franco apoio ao aniquilamento de direitos, ao fim, na prática, da
aposentadoria para milhões de brasileiros, à eliminação dos direitos
trabalhistas, à entrega do patrimônio nacional a grandes empresas estrangeiras.
Seu
ódio transforma em esgoto as redes sociais.
Não há como prever o que
acontecerá a esta sociedade. Uma convulsão social poderá desalojar os usurpadores
do poder, ou poderemos seguir para o cadafalso como povo. A História sempre é
prenhe de surpresas. O que é certo, no entanto, tomando a frase de Sartre, é
que somente poderão dizer no futuro que foram livres, no Brasil pós-golpe de
2016, os que agora estão se comprometendo e resistindo. É uma trágica liberdade
de tempos sombrios, mas se nos foi dado viver neste tempo, que vivamos com a
dignidade que somente os seres livres podem ostentar.
Hoje são livres os que
resistem.”
Por:
Márcio Sotelo Felippe, pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela
Universidade de São Paulo. Procurador do Estado exerceu o cargo de
Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB
Federal.
Muito bom porreta
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