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“Não existe nada que seja
pacífico, nada que seja harmônico. O que me assusta é o anacronismo de trazer
de volta a mentalidade do passado”, diz Reale. “Corremos o risco de entrar numa
ditadura por meio do voto”. Em março, diante da publicação pelo presidente de
um vídeo pornográfico nas suas mídias sociais, o jurista chegou a considerar um
pedido de impeachment por falta de decoro. Desistiu da ideia porque ainda não
existem condições políticas para um pedido desse tipo. Mas, pelo comportamento
do presidente, essas condições podem surgir rapidamente.
O que o senhor achou desse
esforço do governo para comemorar o Golpe de 64? É algum tipo de provocação?
O presidente Jair Bolsonaro
desconhece a história brasileira, desrespeita aqueles que lutaram pela
liberdade durante tantos anos e desrespeita os que foram torturados pelo major
Ustra ou por outros membros dos organismos sigilosos de repressão. Faz tábula
rasa do passado, do sofrimento e da luta que tantos empreenderam, inclusive eu.
É um desrespeito, um acinte à história. Para que isso? Para reproduzir essa
ideologia da Segurança Nacional. É sempre a mesma ideia. Na hora que quer fazer
uma releitura do golpe, ele diz que é um ato de salvação do Brasil contra a
esquerda. Na verdade, ele quer justificar esse mote do governo dele, que é
sempre de oposição a algo, sempre de guerra, sempre de conflito. Não existe
nada que seja pacífico, nada que seja harmônico. O que me assusta é o
anacronismo de trazer de volta aquela mentalidade do passado.
Que mentalidade?
A mentalidade do confronto,
da Lei de Segurança Nacional. O que é a Lei da Segurança Nacional? É o
antagonismo. É combater os antagonismos que visam evitar os objetivos nacionais
permanentes. O tempo inteiro esse sujeito, o presidente da República, vive no
antagonismo. Ele vai plantar uma oliveira em Israel e diz que a oliveira dele
vai crescer mais do que a do Lula. O tempo inteiro tem uma contraposição, uma
litigiosidade. Nada é prospectivo, nada é no sentido positivo. O tempo todo ele
precisa da contraposição, ele precisa de inimigo. É uma obsessão com o inimigo.
Como a afirmação do
presidente de que o nazismo é de esquerda?
Isso é uma tolice
gigantesca. Ele não conhece nada da história. O Partido Socialista e o Partido
Comunista na Alemanha foram perseguidos. A maioria de seus membros foi morta. O
principal eixo de ação policial da Gestapo e da SS eram os partidos comunista e
socialista. Todo o ideário nazista é tipicamente, claramente, baseado no
heroísmo e sustentado no pensamento de direita, não de igualdade.
No Carnaval teve a
publicação do vídeo pornográfico no Twitter do presidente. Como interpretar
isso?
Acho que se deve ter uma
visão de conjunto de todos os atos que o presidente vem praticando para
compreender a motivação e a dinâmica desse comportamento. Ele ataca a imprensa,
ataca a formação esquerdista da academia brasileira. Ou seja, o presidente atua
sempre com respostas a situações que lhe são críticas de uma forma visceral, e
isto aconteceu no caso da divulgação do vídeo. É uma resposta de maneira bruta
às críticas que ele recebe. Não foi nenhuma questão moral que levou o
presidente a divulgar o vídeo. Foi uma retaliação contra o Carnaval. Veja no
que muitos blocos se transformaram? Ele generaliza aquele ato e estabelece uma
identidade falsa entre o ato e a ação dos blocos. Por que? Porque muitos blocos
fizeram críticas a ele.
O senhor falou que a
publicação do vídeo poderia ser passível de um pedido de impeachment. É mesmo?
É passível de impeachment
porque o impeachment precisa ter a configuração de um delito político e o
delito está na falta de decoro. Enviar esse vídeo para a população brasileira
com acesso à internet foi escarradamente uma falta de decoro. Esse é o
pressuposto jurídico, falta o pressuposto político. Acho que politicamente
agora não tem viabilidade, nem haveria caminho, mas o presidente está
insistindo em abrir esse caminho para o impeachment.
Dá a sensação de que o
presidente se sente livre para fazer o que quer?
Ele sente-se poderoso, ele é
um mito sem dizer nada, sem pensar nada. E ele foi incensado para isso. Sem
esforço nenhum se tornou um líder depois de 28 anos de uma legislatura
medíocre.
E esse uso intensivo das
redes sociais. Como o senhor vê isso e como associa esse uso à democracia?
A rede social é um novo
agente político. Elas são capazes de desconstituir, mas não de constituir. E se
vê que quando a mídia social vai constituir um governo, ela está multifacetada,
com opiniões que são muito mais emocionais do que fundamentadas em propostas,
ideias e avaliações. Ela trabalha só com elementos emocionais e toca nos pontos
da superfície, como em questões de costumes e de defesa, por exemplo.
Ela não reflete a opinião
pública?
Ela reflete uma opinião
emocional, não refletida. Ela deu voz, como diz o Umberto Eco, ao idiota, que
antes não tinha como vocalizar e agora ele vocaliza sua opinião e se sente no
direito de criticar todo mundo, de forma até baixa, de fazer as relações as
mais absurdas.
O senhor acha que ele está
adiando o enfrentamento dos problemas?
As vezes em que ele foi
falar sobre questões de governo foi um desastre. Quando ele vai falar sobre
economia, ele fala e, em seguida, é interpretado. Na verdade ele vive como se
precisasse sempre ser interpretado, ou pelo ministro da Economia ou pelos militares
que o cercam.
Os militares viraram uma
força moderadora?
Moderadora, interpretativa e
acomodativa. Primeiro porque o mundo evoluiu de tal forma que o mundo não
permite mais ditaduras. Existe uma rejeição a qualquer ato de ditadura e isso
seria inadmissível na comunidade internacional. E depois, o Brasil se
consolidou como democracia, apesar de todos os partidos políticos estarem
fragilizados houve uma consciência democrática que se cristalizou especialmente
junto à classe média, à intelectualidade e à massa crítica do país.
Mas a oposição parece muito
enfraquecida.
Não existe. A classe
política foi vitimada pelas denúncias de corrupção e pegou os dois partidos que
eram mais organizados e pensantes, que são o PT e o PSDB. Lideranças
importantes dos dois partidos, desde um Lula até um Aécio, foram atingidas. E
isso fragilizou muito os partidos políticos, mas eles ainda estão estruturados
e têm capacidade de mobilização contra qualquer ato que vá violar a democracia.
Há também o movimento sindical e as entidades da sociedade civil brasileira,
que estão muito amortecidas, mas no momento em que acontecer alguma coisa mais
grave haverá uma reação.
Que tipo de coisa grave?
Temos que esperar. Ele só
tem uma bala de prata para tentar compor seu governo com uma perspectiva de
médio prazo, que é a Reforma da Previdência. Ele já disse que não dá para
governar o País com Congresso Nacional, falou isso numa entrevista que deu.
Dentro dessa linha de certa coerência, o que ele falou lá atrás não está
desdito pelos comportamentos de hoje. A insatisfação do Congresso com ele é
crescente, cada vez que ele solta um Twitter perde um voto ou mais. E se não
passa a Reforma? É nisso que eu vejo lá para frente uma eventual perspectiva de
confronto mais grave.
Se não conseguir aprovar a
reforma?
As reações dele frente à
contrariedade são reações violentas. Não consegue dialogar, não consegue viver
com uma derrota. Foi ungido presidente sob o manto de ser um mito. Mas sua
desmistificação está ocorrendo em pequenos incidentes e na hora que vier um
incidente mais profundo, que comprometa a perspectiva do País a médio e longo
prazo, como o mito vai enfrentar isso. Esse é meu medo.
Como o senhor vê o pacote
anti-crime?
É pura perfumaria porque não
resolve nada. Vou dar um exemplo. O que o Código Penal e a lei de crimes
hediondos propõem? Pela lei quem pratica um crime hediondo tem que ficar no
regime fechado dois quintos da pena. O projeto propõe que passe para três
quintos em regime fechado. O que isso resolve? Nada. Estabelece que para
determinados crimes, sejam de corrupção ou violentos, o condenado cumpra pena
em regime fechado. Pergunto qual é o condenado por roubo a mão armada, por
exemplo, hoje em dia, que a Justiça não determine que cumpra pena em regime
fechado?
E quantos aos crimes do
colarinho branco?
Nos crimes de corrupção ele
deixa de elencar o mais grave de todos que é o de concussão, a extorsão para
retirar dinheiro, exigir de alguém que lhe dê dinheiro para fazer ou deixar de
fazer algo. Esquece a concussão e estabelece que a corrupção e o peculato
tenham regime fechado. É uma posição muito simplória que eu chamaria de ilusão
penal. Ele acha que aumentando o prazo de regime fechado resolverá o problema
da criminalidade. Errado. Dou o exemplo do feminicídio. Matar por questão de
gênero passou a ser um crime qualificado, com pena elevada de 12 a 30 anos. E
os feminicídios aumentaram.
Se tivesse continuado na
Lava Jato estaria fazendo um serviço melhor?
Acho que sim, primeiro
porque afastaria qualquer dúvida de eventual parcialidade. Ele foi para um
governo que é inimigo do PT, do PSDB, e deu sentenças, a começar pelo caso do
Lula, contra políticos desses partidos. E depois fiquei insatisfeito em ver o
ministro sendo desautorizado na nomeação da cientista política Ilona Szabó para
o Conselho Penitenciário. Foi uma humilhação. Bolsonaro não respeitou o
ministro. Moro não teve liberdade para indicar a suplente de um conselho. Por
quê? Porque ela critica o governo. Bolsonaro não consegue conviver com a
adversidade.
Fonte: https://www.msn.com/pt-br
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