A
questão parece fácil de responder, se o déficit da Previdência for tomado
simplesmente como uma diferença entre receitas e despesas. Mas não é esse o
caso. A resposta vai muito além de uma mera apuração contábil e depende inteiramente
da interpretação do que a Constituição Federal define como o orçamento da
Seguridade e da Previdência Social e sua relação com a garantia dos direitos
sociais aos cidadãos.
Ao se
considerar esses elementos, é possível entender a real situação das contas da
Previdência e sua evolução ao longo dos últimos anos, que é tema central deste
artigo. A Previdência Social, segundo a Constituição Federal de 1988, faz parte
da Seguridade Social, que é um conjunto de ações integradas de proteção social,
que envolvem também a saúde e a assistência social. Para custear a Seguridade,
os constituintes criaram um orçamento específico, com fontes de recursos
variadas.
Esse orçamento
é composto pelas contribuições previdenciárias de trabalhadores e de
empregadores, bem como por tributos gerais – COFINS (Contribuição para o
Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social Sobre o Lucro
Líquido) e o PIS-PASEP (Programa de Integração Social) –, receita com loterias
e outros itens de menor expressão.
Com
isto, os parlamentares à época desejavam evitar os problemas de financiamento
das políticas sociais, existentes na época da ditadura militar, quando elas eram
subordinadas aos objetivos da política macroeconômica e os recursos se limitavam
à folha de pagamentos, como base praticamente única de arrecadação tributária.
Um
detalhe importante do sistema de custeio da Seguridade é que ele não está
segregado entre as políticas públicas que a compõem, devendo todas elas serem
executadas de forma integrada. Em outras palavras, embora essa integração tenha
sido incompleta, o orçamento previsto na Constituição é único para a
Previdência, a Assistência e a Saúde. Este orçamento é bastante expressivo,
tendo alcançado R$ 837 bilhões em despesas no ano de 2017.
Desse
total, quase R$ 560 bilhões foram gastos em benefícios previdenciários, R$ 116
bilhões nas ações de saúde, R$ 81 bilhões em benefícios assistenciais (incluindo
o Programa Bolsa Família) e R$ 54 bilhões no abono salarial e no
seguro-desemprego. Do lado das receitas, o orçamento da Seguridade recebeu, em
2017, R$ 753 bilhões. Praticamente a metade desse valor veio de contribuições
previdenciárias, cerca de R$ 374 bilhões. O restante provém, principalmente, da
COFINS, com R$ 236 bilhões; da CSLL, com R$ 76 bilhões; e do PIS-PASEP, com
outros R$ 62 bilhões.
Assim,
pode-se ver a importância das fontes de receitas oriundas de tributos sobre o
faturamento e o lucro das empresas para sustentar as políticas sociais. E isto
é importante em um país em que o mercado de trabalho é estruturalmente
heterogêneo, gerando poucos empregos formais, e que, especialmente neste
momento, está sendo impactado pela desregulamentação trabalhista e pelo avanço
e difusão de novas tecnologias que são poupadoras
de mão-de-obra.
Mas, a
potencialidade arrecadatória do sistema de custeio da Seguridade é ainda maior,
principalmente se for considerado que atualmente se estima que há cerca de R$
141 bilhões em renúncias fiscais com base nesses tributos. Vale mencionar que,
deste total, R$ 57 bilhões referem-se a receitas previdenciárias. Além disso, é
expressivo o volume de recursos que poderia entrar nos cofres da Seguridade,
através de uma melhor cobrança das obrigações tributárias e de uma fiscalização
mais atuante sobre a fraude trabalhista, caracterizada pelo emprego sem
carteira.
Portanto,
desconsiderando esses vazamentos de receitas das políticas sociais e da
Previdência, em 2017, a Seguridade apresentou um déficit de R$ 57 bilhões. Mas,
isto significa que há um desarranjo estrutural no financiamento das políticas
sociais previstas na Constituição? O resultado do orçamento da Seguridade, na
última década, foi predominantemente superavitário. Entre 2005 e 2014, a sobra
de recursos foi da ordem de R$ 66 bilhões, ao ano, em média.
Somente
depois de 2014, quando a economia se desacelerou e caiu em grave recessão, o desemprego
explodiu e as empresas perderam receitas e lucros, é que houve a inversão de
sinal nas contas da Seguridade. Ou seja, os déficits do biênio 2016-2017 foram
conjunturais e não o resultado de um problema estrutural no sistema de custeio
em vigor.
Para
entender este raciocínio, é preciso explicar a diferença existente entre a interpretação
constitucional do chamado déficit da Previdência e a, outra, de natureza
fiscalista, feita por aqueles que avaliam que há um déficit estrutural. A
primeira diferença é que, na visão fiscalista, a apuração dos resultados da
Seguridade social não leva em conta R$ 160 bilhões que são desvinculados pela
chamada DRU (Desvinculação das Receitas da União), ou seja, podem ser
destinados a outros fins pelo governo.
A segunda
diferença é que, também na visão fiscalista, se incluem nesse orçamento as
receitas e despesas da previdência dos servidores da União, inclusive a
inatividade dos militares. Como essa conta é negativa em R$ 76 bilhões, a soma
com a perda de receita da DRU faz o déficit da Seguridade pular para R$ 291
bilhões, em 2017.
É um
erro a inclusão do RPPS dos servidores no orçamento da Seguridade porque ele faz
parte da despesa da administração pública, não é acessível a todo o brasileiro
e tem regras que vão além da proteção social, sendo um instrumento também de
gestão de pessoal na administração pública. Por isso mesmo é que esse regime
tem regras específicas e diferenciadas, ainda que se busque maior similitude
com o regime geral dos trabalhadores do setor privado.
Por fim,
se o regime dos servidores da União faz parte da Seguridade, o mesmo deveria
ser feito com as centenas de regimes de previdência de estados e municípios. Além disso, vale lembrar que, na década
passada, uma sequência de emendas constitucionais e leis específicas mudaram os
parâmetros de concessão de aposentadorias e pensões dos servidores públicos. No
caso da União, a implantação da previdência complementar, em 2013, teve como
consequência a limitação do valor dos benefícios, fazendo com que se projete
equilíbrio entre receitas e despesas no longo prazo.
Se há um
déficit, no momento, ele se deve aos compromissos passados, e não aos fluxos presentes
e no futuro. No caso de muitos estados e municípios, a previdência complementar
ainda não foi implementada, em grande medida por implicar em custos, de curto
prazo, de difícil enfrentamento, num quadro de estrangulamento financeiro pela
própria perda de receitas causada pela crise econômica.
Na
realidade, o bom desempenho das contas da Seguridade depende de um ambiente
econômico que combine crescimento com geração de emprego de qualidade. A década
passada ilustra essa questão chave, pois nela houve, não apenas expansão do
produto interno, como a taxa de desemprego caiu a níveis relativamente baixos
e, sobretudo, o emprego formal, com proteção previdenciária e trabalhista, foi
o carro chefe. Isso não prescindiu, claro, de políticas de inclusão
previdenciária, abrangendo as empregadas domésticas, os trabalhadores por conta
própria e as donas de casa para os quais se criaram modalidades de registro e
filiação previdenciária específicos.
A partir
de 2015, o ambiente econômico e político do país se degradou intensamente. A
política econômica deu um “cavalo de pau” em direção ao modelo de austeridade
fiscal, a política monetária ortodoxa mirou a queda da inflação, sem dar
atenção ao custo social e econômico, e a luta política tomou conta de todos os
poderes e gerou uma crise que paralisou empresas e setores produtivos centrais
para a economia.
Essa
combinação de fatores tornou a recessão que se desenhava muito mais profunda e
longa do que o esperado. Em menos de um ano, a taxa de desemprego mais que
dobrou e 13 milhões de pessoas ficaram sem emprego. Não se pode pensar que as
receitas da Seguridade, principalmente as contribuições previdenciárias, fossem
passar por isso incólume. A demora em haver retomada do crescimento e o pobre
desempenho do emprego formal, desde então, só prolongam esse quadro.
Se as
contas da Seguridade estão mostrando déficits, eles são conjunturais e resultam
da queda real nas receitas, numa conjuntura de crise e estagnação econômica. Entretanto,
argumenta-se que, no futuro, o envelhecimento da população fará o número de
idosos beneficiários crescer muito mais do que o número de trabalhadores
ativos, contribuintes. Assim, haveria um desequilíbrio estrutural.
A
mudança demográfica é um fato inegável, mas não é único nem, tampouco, de curto
prazo. A garantia da proteção previdenciária, no futuro, vai depender do ritmo
de crescimento do emprego, da proporção com que homens e mulheres irão
participar das atividades econômicas, da sua produtividade no trabalho, dos
salários e outros rendimentos que formarão a base de contribuição, da taxa de formalização
dos vínculos de emprego, da inclusão de trabalhadores autônomos no sistema como
contribuintes, da estrutura de tributação e da eficiência da arrecadação, entre
outros. Ou seja, há um amplo leque de questões, além da/os desafios impostos
pela transição demográfica, que precisariam ser trazidos ao debate sobre a
reforma da previdência, que não deveria ser decidida com um senso de urgência
que não existe.
Enfim, é
natural, de tempos em tempos, que haja revisão de parâmetros previdenciários em
função das mudanças sociais e econômicas. Para que essa revisão seja aceita por
todos os participantes, é preciso avaliar com detalhe os impactos fiscais, mas
também os impactos sociais. Afinal, previdência é um pacto social, um pacto
entre trabalhadores, empregadores e estado, que atravessa gerações, que exige
confiança e entendimento.
Os
números citados neste artigo foram extraídos da Análise da Seguridade Social
2017, publicada pela ANFIP, salvo quando houver outra indicação.
Por: Clemente
Ganz Lúcio Sociólogo, diretor
técnico do DIEESE e Clóvis Scherer, Economista do DIEESE.
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