O
planejamento da Previdência Social exige uma visão prospectiva sobre o futuro,
de um período que vai de três a cinco décadas, ou seja, deve-se imaginar quais
serão as condições econômicas e sociais no horizonte e que tipos de proteção
social e trabalhistas poderão ser criadas em 2050, 2070. Fácil, não? Um
planejamento assim, expressa compromisso solidário e intergeracional com todos,
inclusive com aqueles que ainda nem entraram no mercado de trabalho ou nasceram.
E qual seria o compromisso presente?
É
necessário que se faça um exercício para imaginar em que condições o mundo do
trabalho estará estruturado lá na frente e que tipo de mudança poderá acontecer
no percurso, qual será a dinâmica econômica nessa trajetória temporal. O que
acontece hoje indica que acontecerão mudanças disruptivas no sistema produtivo,
que alterarão profundamente o mundo do trabalho, os empregos e as ocupações.
A
relação entre atividade humana e tecnologia passará por transformações estruturais,
muitas das quais hoje não somos capazes de imaginar. A situação do momento
indica a aceleração e expansão das inovações que passam a ocupar múltiplas
atividades laborais, substituindo muitas, criando algumas.
Uma
característica que vem se impondo a partir das inciativas dos empregadores
privados e públicos é a promoção de reformas trabalhistas que visam obter a
máxima flexibilidade nas formas de contratação, de jornada de trabalho, na
definição de salários e das condições de trabalho. O assalariamento clássico
estável, com capacidade contributiva, vem dando lugar ao vínculo flexível
instável, que tem baixa capacidade contributiva. A produtividade aumenta e o desemprego
torna-se, mais uma vez, estrutural.
Nesse
mundo em mudança, a Previdência Social Pública, Solidária e de Repartição
deverá ser financiada com novas formas de contribuição, deslocando grande parte
do financiamento, que atualmente vem da contribuição social sobre a folha
salarial, para outras formas de arrecadação tributária. Para financiar de
maneira sustentável uma das maiores despesas do orçamento público e uma reforma
consequente começaria por uma reforma tributária inovadora e estrutural –
ampla, progressiva e fundada na justiça e capacidade contributiva.
A
proteção que deveria ser buscada e construída, para financiar o futuro, teria
que almejar a garantia universal dos direitos dos idosos, assegurando a eles dignidade
econômica para sustentar a qualidade de vida na velhice. Para isso, seria necessária
uma complexa pactuação distributiva do produto econômico na forma de política
pública universal.
Se,
de um lado, o “mercado” aposta muito na inovação tecnológica para incrementar a
produtividade, de outro lado, a sociedade deveria assumir o comando e o controle
sobre a regulação do uso da tecnologia, controlar os resultados de toda a
modernização e distribuir os ganhos obtidos com todos. A agenda sobre os tipos
de emprego e ocupação deveria ser uma prioridade que carregasse para o centro
do debate a redução da jornada de trabalho, o papel das políticas públicas
universais e gratuitas de saúde, educação, transporte, moradia e as formas de
tributação para mobilizar recursos para financiar essas políticas.
No contexto
dessa macropactuação entre produção e distribuição econômica, que considera a
relação entre tecnologia, inserção ocupacional para todos e boas condições de
trabalho, é que a previdência e a proteção social deveriam ser pensadas. A previdência
social deve mudar para enfrentar os desafios futuros e tratar dos problemas
atuais que ainda não foram resolvidos. O primeiro se refere à revisão de todas
as desonerações e isenções concedidas.
Seria
necessário adotar o princípio orçamentário no qual quem é desonerado implementa
iniciativa correspondente ao recurso financeiro correspondente à desoneração. Reorganizar
o sistema de controle de pagamento à Previdência inibiria novos devedores, o
que precisaria ser feito a partir da implantação do E-Social (escrituração
eletrônica da folha de pagamento) e de outras formas de controle corrente do
fluxo de pagamentos. A reorganização dos mecanismos institucionais para cobrar
devedores já está atrasada demais.
O
trabalho de educação previdenciária deveria ser permanente e atuante, em um
mundo do trabalho em mudança. O princípio da meritocracia no acesso às
políticas sociais, tão caro aos liberais, é um fundamento atrasado e nefasto ao
processo civilizatório, em uma sociedade com gigantescas e graves desigualdades.
A meritocracia, nessa situação, é a confirmação de que o poder dos ricos se
sobrepõe ao dos demais e, nesse quadro, a assistência social pode ser concebida
como a esmola que o Estado garante aos excluídos. Manter um regime público de
repartição solidária seria base para um mundo em transformação e evolução, com
mais justiça.
Qualquer
mudança deveria ser prospectada considerando um quadro básico de referência e
de mensuração de impactos, em diferentes cenários. Impactos sobre as condições
de vida das pessoas, a dinâmica econômica nas comunidades e no território,
sobre o financiamento do estado e das políticas públicas etc.
As
mudanças paramétricas devem observar, além dos elementos acima indicados,
respostas à transição demográfica, ao aumento da expectativa de vida, às
desigualdades do mundo do trabalho e as perspectivas de superação etc. Os
princípios de justiça e equidade devem orientar as regras de participação de
todos no financiamento que garantirá o direito à proteção.
As
transições devem ser planejadas de modo a valorizar as mudanças e os
compromissos com as novas condições pactuadas de acesso e financiamento,
envolvendo todos. As desigualdades precisam ser analisadas e consideradas nas
transições, de um lado, observando as medidas que governo, empresas e sociedade
implementarão para superá-las, de outro, criando regras de transição equânimes
para condições estruturais de desigualdade.
A
idade é, com certeza, uma dimensão paramétrica fundamental que precisa ser
tratada. Essa análise deve vir acompanhada das condições protetivas oferecidas
para a vida laboral (maternidade, paternidade, acidente, invalidez, desemprego,
doença etc.), do tamanho da jornada de trabalho, das condições de trabalho, do
investimento em formação, das ocupações de interesse social, das oportunidades
de trabalho para os jovens e na velhice etc.
Nenhum
aspecto deve estar interditado para o debate e a consideração e todas as regras
paramétricas devem ser objeto de permanente, sistemática e criteriosa
avaliação. Uma abordagem cuidadosa, qualificada e tolerante com as diferentes
visões deve conformar o campo para a construção dos acordos sociais para um
sistema protetivo universal, que muda para melhor e é capaz de enfrentar os
desafios que se apresentam.
Não
cabe ao mercado – agente econômico interessado em ganhar e acumular riqueza – a
hegemonia na definição da agenda, na imposição de medidas e de regras.
Tecnologia, produtividade, educação e proteção social não podem ser socialmente
regulados pelos agentes do mercado. A regulação deve ser macro e geral,
coordenada pelas instituições criadas e sustentadas pela democracia – o Legislativo
– que no espaço do contraditório é capaz de produzir as regras para a vida em
sociedade e que distribui o resultado econômico do trabalho de todos.
Questões
tão fundamentais que atingem a todos devem estar estruturalmente reguladas na
Constituição, exigindo sempre maioria qualificada para alterá-las. As
experiências internacionais devem iluminar o debate para qualificar as
escolhas. O mundo afirma de maneira peremptória que o regime de repartição
solidária é aquele que melhor responde aos desafios das sociedades. As
aventuras da capitalização geraram tragédias ao promover a pobreza e a
desproteção na velhice.
O
Brasil, como muitos outros países mundo afora, precisa de reformas que promovam
a previdência social universal e sustentável. Para isso será preciso ousadia de
pactuar a partir do debate cuidadoso e qualificado. Trata-se de anunciar à
sociedade a utopia a ser construída, enunciada no espaço do diálogo social,
compartilhada por todos e deliberada nos espaços institucionais da democracia.
Por: Clemente Ganz Lúcio Sociólogo, diretor técnico do DIEESE. Produzido
a partir de exposição realizada na terça-feira (20/03) durante lançamento da
Frente Parlamentar em Defesa da Previdência Social, no Congresso Nacional.
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