Em 1987, no segundo ano de
profissão, recebi a missão de entrevistar alguns artistas conhecidos que tinham
como passatempo outras atividades criativas. A pauta era encontrar quem tinha
sucesso em uma arte e gostava de se dedicar a outra nas horas vagas. Um dos
entrevistados, por exemplo, foi o ator Paulo Autran (1922-2007), que passava horas
criando peças de tapeçaria.
Outro foi Belchior. Descobri
que ele dedicava boa parte de seu tempo a desenhar. Segundo minha fonte, não
era uma proposta modesta. O cantor estaria produzindo um material volumoso de
desenhos.
Na data marcada, entrei em
sua casa na zona oeste de São Paulo para entrevistá-lo e, confesso, fiquei
surpreso.
Não seria correto dizer que
ele havia montado uma gigantesca biblioteca dentro de casa. Mais parecia que o
imóvel era originalmente uma biblioteca e que ele teria colocado ali alguns
elementos para dar uma cara de residência, como um sofá aqui e um guarda-roupa
ali. Nos armários, roupas e discos disputavam espaço atrás das portas.
Os livros estavam por toda
parte. Nos banheiros. Na cozinha. Ele colocou uma pilha de livros nas pontas de
cada degrau da escada que levava ao andar superior. Quem passasse por ela teria
pouco mais da metade do degrau para colocar os pés. Se havia alguma ordem
naquele mundo de livros, eu não conseguia enxergá-la em parte alguma.
DIVINA
COMÉDIA
Muito simpático e
visivelmente achando graça da minha reação àquele ambiente, Belchior só assumiu
um ar mais sério ao começar a falar de sua paixão pela "Divina
Comédia", poema épico escrito pelo italiano Dante Alighieri no século 14.
O cantor falava sem parar
sobre a obra que estava inspirando sua produção de ilustrações. A proposta era
criar 3.000 desenhos sobre as várias passagens do poema, e a metade já estava
desenhada. Um trabalho de anos. Uma paixão quase juvenil foi tomando conta de
seu discurso. Dante era, sem dúvida, a maior influência comportamental,
filosófica e artística assumida por Belchior.
Os desenhos estavam em
várias caixas, algumas com conteúdo disposto em rigorosa ordem. Outras, em
amontoados caóticos, que pareciam deixar o próprio autor perdido. Belchior
dispensava vários minutos procurando sofregamente por um ou outro desenho que
considerava essencial para ser mostrado ao repórter.
Havia unidade de traço nos
desenhos, alguns que pareciam mais finalizados, com um trabalho intenso de
sombras, e outros que indicavam ainda estar numa fase de esboços.
Belchior não tinha ideia de
quando terminaria esse trabalho. Acreditava que levaria mais alguns anos para
completar os 3.000 desenhos, mas não estava contente com uma grande parte
deles. Disse que provavelmente deveria refazer algumas vezes uma boa parte do
material, sem a mínima pressa para acabar.
FASE
FINAL
Durante quase três horas de
conversa, ele fugiu de todas as perguntas sobre música. Lançara meses antes um
álbum ao vivo, com boa recepção. Conversar sobre sua música não lhe interessava
porque, afirmava tranquilamente, era algo já encaminhado, uma missão em fase
final.
"Gosto de cantar e
gosto de escrever canções, mas depois que você compõe e grava, tudo é capaz de
andar por conta própria. Um dia eu vou morrer e minhas músicas vão continuar
por aqui. Terei deixado as minhas gravações, e uma boa parte delas foi gravada
de modo brilhante por outras pessoas. Mas esses desenhos ainda precisam muito
da minha dedicação."
Na despedida, Belchior deu
ao repórter um exemplar do disco mais recente, com autógrafo carinhoso na capa,
e disse: "Desculpe, mas ainda não posso dar um desenho a você. Eu não
considero nenhum deles como terminado”.
DE SÃO PAULO: THALES DE
MENEZES 30/04/2017
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