Na São Francisco de 1919, no
auge da pandemia de gripe que se espalhava pelo mundo, alguns moradores,
cansados após meses de restrições, resolveram criar um movimento batizado de
Liga Anti-Máscara. Desconfiados da eficácia do uso de máscaras para frear o
avanço da doença, eles acusavam as autoridades de violar seus direitos
constitucionais e pediam a volta à normalidade. Em um encontro realizado em 25
de janeiro daquele ano, chegaram a reunir mais de 2 mil pessoas.
Realizado há mais de cem
anos, o protesto lembra as manifestações recentes em alguns estados americanos
- e também em partes do Brasil e de outros países - contra as regras de
distanciamento social, o fechamento do comércio e outras medidas impostas para
conter a atual pandemia de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.
Nos Estados Unidos, o uso de
máscaras em espaços públicos para reduzir o risco de contágio pelo coronavírus
é recomendado por especialistas médicos, incentivado pelo governo federal e
obrigatório em alguns Estados e cidades.
Mas as medidas vêm gerando
resistência, protestos e até episódios de violência. Na semana passada, um
segurança de uma loja em Flint, no estado de Michigan, foi morto a tiros depois
de impedir que uma criança entrasse no local sem máscara. Em Stillwater
(Oklahoma), ameaças levaram as autoridades a revogar a exigência do uso de
máscaras em estabelecimentos comerciais.
Semelhanças
e diferenças
Assim como os manifestantes
de agora, os integrantes da Liga Anti-Máscara eram contra a exigência por
diferentes motivos. "Muitas pessoas (simplesmente) não gostavam de usar as
máscaras", diz à BBC News Brasil a historiadora Nancy Bristow, autora do
livro American Pandemic: The Lost Worlds of the 1918 Influenza Epidemic
("Pandemia Americana: Os Mundos Perdidos da Epidemia de Gripe de
1918", em tradução livre).
"Mas também havia
pessoas que argumentavam que a exigência era uma violação de sua liberdade,
intrusão excessiva do governo, coisas que estamos ouvindo novamente hoje",
salienta Bristow, que é professora de Universidade de Puget Sound, no Estado de
Washington.
Mas apesar da semelhança no
discurso, Bristow ressalta que há uma diferença fundamental entre o movimento
de 1919 e os protestos atuais: "Eles não tinham os dados e as evidências
que temos hoje de que fazer isso (cumprir as medidas de emergência) vai salvar
vidas. A diferença é que agora não se pode alegar ignorância".
Demora
em reagir
A chamada gripe espanhola,
que causou mais de 50 milhões de mortes ao redor do mundo, atingiu os Estados
Unidos em três ondas, a partir da primavera de 1918 (outono no Brasil), quando
focos foram identificados na Costa Leste, em soldados que haviam lutado na
Primeira Guerra Mundial.
Não levou muito tempo para a
doença se espalhar pelo país e chegar à Costa Oeste. Em São Francisco, então
uma cidade de 500 mil habitantes, o primeiro caso foi confirmado em 24 de
setembro de 1918, em um paciente que havia retornado de uma viagem a Chicago.
Mas as autoridades
municipais, assim como ocorreu em outras cidades, demoraram a reagir.
Inicialmente, determinaram apenas que doentes fossem colocados em quarentena e
recomendaram que as pessoas praticassem boa higiene e evitassem multidões.
Somente em 18 de outubro,
mais de três semanas depois do primeiro diagnóstico, foi decretado o fechamento
de escolas e locais de lazer e proibida a aglomeração de pessoas. A essa
altura, São Francisco já registrava mais de 3,7 mil doentes e 70 mortos.
O médico William Hassler,
principal autoridade de saúde no governo municipal, considerava o uso de
máscaras em público a maneira mais eficaz para impedir o avanço da doença e, em
25 de outubro, determinou sua obrigatoriedade. Quem desobedecesse estava
sujeito a multa ou até mesmo prisão.
"São Francisco foi uma
das primeiras grandes áreas metropolitanas a exigir que toda a população usasse
máscaras", diz à BBC News Brasil o especialista em história da medicina
Brian Dolan, professor da Universidade da Califórnia em São Francisco.
Símbolo
de patriotismo
Em meio aos esforços nos
meses finais da Primeira Guerra Mundial, o uso de máscaras começou a ser
considerado símbolo de patriotismo. A imprensa da época estimava que 80% da
população de São Francisco estivesse cumprindo a ordem nas semanas iniciais.
Mas centenas foram detidos
por desobedecer. Muitos outros usavam de maneira errada. Há relatos até de
pessoas usando máscaras com um buraco na boca, para fumar.
As máscaras da época eram
feitas de gaze. A Cruz Vermelha fabricava e distribuía em todo o país, mas não
havia o suficiente. Com a escassez, as autoridades recomendavam que a população
costurasse suas próprias máscaras, com qualquer material disponível. Muitas
eram feitas de tecidos porosos, o que prejudicava sua eficácia.
"Também se tornou um
tipo de item da moda, assim como está acontecendo agora", observa Dolan.
Ao final de outubro, São
Francisco tinha 20 mil pessoas infectada e mais de mil mortos. Mas o número de
novos casos vinha diminuindo, e as autoridades decidiram que era hora de
começar a levantar as restrições.
A partir de 16 de novembro,
menos de um mês depois do início das medidas de emergência, restaurantes,
hotéis, cinemas, teatros e arenas de esportes começaram a reabrir, com casa
lotada.
O uso de máscaras ainda era
obrigatório, mas muitas pessoas passaram a ignorar a determinação. O próprio
Hassler e o prefeito, James Rolph, foram fotografados sem máscaras enquanto
assistiam a um combate de boxe. Ambos pagaram multa.
Celebração
prematura
Ao meio-dia de 21 de
novembro, dez dias após o fim da Primeira Guerra Mundial, o som de sirenes
ecoou pela cidade, anunciando o fim da obrigatoriedade. Em comemoração,
multidões arrancaram suas máscaras e as jogaram no chão, cobrindo ruas e
calçadas com o que um jornal da época descreveu como "vestígios de um mês
tortuoso".
Mas a celebração logo se
revelou prematura, e o número de casos da doença voltou a crescer. Duas semanas
depois, o prefeito pediu que a população voltasse a usar máscaras em público,
desta vez de maneira voluntária.
"Eles levantaram as
restrições e, então, sofreram uma nova onda da pandemia. E em vez de reiterar
as regras de distanciamento social, o que teria sido a decisão lógica, apenas
se concentraram no uso de máscaras e na quarentena dos doentes, pensando que
poderiam controlar a doença com essas medidas", diz Bristow.
Mas, sem obrigatoriedade ou
risco de punição, a maioria da população ignorou a recomendação. Calcula-se que
apenas 10% voltaram a aderir à medida. Com o número de doentes crescendo, em 17
de janeiro de 1919 as autoridades tornaram o uso de máscaras obrigatório
novamente.
Resistência
Desta vez, porém, a
exigência foi recebida com resistência. Comerciantes eram contra, temendo que a
regra tivesse impacto negativo nas vendas. Muitos também questionavam a
eficácia das máscaras para conter a pandemia.
Dolan lembra que, na época,
a Associação Americana de Saúde Pública havia publicado um artigo em uma
revista científica no qual dizia que as evidências sobre a eficácia das
máscaras eram contraditórias.
"O desafio era que as
pessoas diziam que, mesmo com as máscaras, não se estava evitando a propagação
da doença", observa o historiador.
Foi nesse contexto que
surgiu a Liga Anti-Máscara, formada por empresários, comerciantes e até alguns
médicos e um integrante do governo, para pressionar pelo fim da obrigatoriedade
que, segundo eles, ia "contra a vontade da maioria da população".
Na verdade, as mais de 2 mil
pessoas presentes do encontro realizado pelo movimento representavam menos de
1% da população da cidade na época, mas muitos de seus membros eram influentes.
Alguns queriam assinaturas
para um abaixo-assinado pelo fim da obrigatoriedade. Outros defendiam medidas
mais drásticas, como a demissão de Hassler. O próprio encontro, com milhares de
pessoas sem máscaras, pode ter ajudado a propagar a doença.
O prefeito inicialmente
resistiu à pressão, afirmando que as posições do movimento não representavam o
desejo da maioria dos moradores. Mas em 1º de fevereiro, uma semana após o
encontro da liga, a exigência do uso de máscaras foi revogada.
Exemplo
Segundo historiadores,
apesar de outras cidades americanas também terem registrado episódios de
resistência à obrigação de usar máscaras, nenhuma teve um movimento tão
organizado quanto o da Liga Anti-Máscara.
Bristow afirma que é difícil
saber o impacto que o uso de máscaras teve no controle da doença em São
Francisco. Mas ela e outros historiadores afirmam que a devastação provocada
pela gripe espanhola na cidade mostra as consequências graves de levantar as
restrições antes que a pandemia tenha sido controlada.
Apesar de inúmeras
declarações das autoridades de que São Francisco havia vencido a gripe
espanhola rapidamente, quando os números gerais do país foram compilados pelo
governo federal, ficou claro que a doença teve efeito devastador.
A cidade registrou um total
de 45 mil infectados e mais de 3 mil mortos, uma das mais altas taxas per capita
nos Estados Unidos. No país inteiro, a gripe espanhola deixou 675 mil mortos.
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional
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