A
violência toma conta das cidades. É o que se ouve, é o que se vê, é o que se
lê, cada vez mais, nos principais veículos de comunicação. A tese não é
equivocada, apenas é incompleta e mal explicada. Não faltam evidências
empíricas, no dia a dia dos brasileiros, para concluí-la verdadeira. Tampouco
as pesquisas e os estudos desmentem o que a mídia esforça-se por ampliar: a
sensação de insegurança, de viver num cenário de permanente violência.
Somos,
sim, um país violento. E não é caso recente. A população indígena foi
praticamente dizimada no contato com portugueses e outros povos europeus, no
início da colonização. Fomos o penúltimo país a acabar com a escravidão.
Chegamos ao século 21 entre as cinco nações mais desiguais do planeta. E, até
hoje, a tortura tem sido largamente empregada por forças policiais no dia a dia
das delegacias e penitenciárias.
Somos
um país de subclasses, em que uma parcela da sociedade sente prazer em se
diferenciar de seus semelhantes e de submetê-los a constantes humilhações. Boa
parte galga postos importantes pela via de apadrinhamentos, mas sente-se
confortável em defender a meritocracia. É o país que tem o maior número de
dentistas do planeta, mas mais da metade da população não faz consultas anuais
a esses profissionais, enquanto 11% dos que têm mais de 18 anos já perderam
todos os dentes, índice que, entre os acima de 60 anos chega a 41,5%.
A
violência está presente no cotidiano da maioria da população, que não tem
acesso a saneamento básico, a saúde, educação e moradia de qualidade. No
entanto, a família, a escola, a mídia não costumam arrolar como violência as
formas mais perversas de opressão e exclusão de milhões de seres humanos.
Mesmo
que o foco seja apenas a violência praticada por arma branca ou de fogo, em
roubos, assaltos e sequestros – com ou sem homicídio –, é preciso conferir
melhor os dados. O senso comum aponta, principalmente, para a violência
cometida por indivíduos de 19 cidades entre as 50 mais violentas do mundo assunção
social baixa, analfabetos – ou quase –, jovens, geralmente negros. São “eles”
os violentos. Ganha força no debate público, também, a situação “insustentável”
em relação à violência praticada por menores de idade – como reverberam, todos
os dias, emissoras de rádio e tevê, jornais e as redes sociais.
A
proposta de redução da maioridade penal, que vários estudos não cansam de
demonstrar como proposta ineficiente para combater o crime, poderia ser vista,
também, de outra forma. Trata-se, no caso, de condenar duplamente quem já foi
punido, desde o nascimento, por uma sociedade que não oferece educação, saúde,
moradia e salário digno para a maioria da população. Que exclui e não ampara a
maior parte dos brasileiros no acesso à renda, num país que, longe de ser
pobre, está entre as dez maiores economias do mundo. Ou seja, nesse sentimento
de vingança, a sociedade quer punir quem ela abandona e oprime.
Somos
um país onde um adolescente é assassinado a cada hora, 24 por dia. Se
continuarmos com essa política de tentar resolver somente pela repressão, sem
nenhum sucesso até aqui, serão 42 mil adolescentes mortos até 2019, conforme
cálculos de Gary Stahl, representante do Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) no Brasil. Os jovens são 29% da população, mas concentram a
metade das mortes por arma de fogo.
O
fracasso dessa política com foco nas 19 cidades entre as 50 mais violentas do
mundo repressão pode ser demonstrado por um dado da Secretaria Nacional da
Juventude, que apontava, em 2012, um crescimento de 74% da população carcerária
nos últimos sete anos, sem que houvesse melhora significativa nos índices de
contenção da criminalidade. A maioria dos delitos que ocupa boa parte do
sistema de justiça do país é de crimes relacionados ao patrimônio e drogas.
Crimes de pequeno porte, porque os criminosos de colarinho branco e os grandes
traficantes – alguns deles certamente escondidos em cargos acima de quaisquer suspeitas
– dificilmente irão para a prisão e jamais para aquelas que amontoam seres
humanos como animais.
Somos
o segundo país – atrás apenas da Nigéria – quando o assunto é assassinato de
adolescentes. Entre 2006 e 2012 foram 33 mil homicídios. Estamos assassinando o
nosso futuro. E como escreveu Gil Alessi, no El País, “os homicídios cometidos
à bala no Brasil têm cor, idade e sexo”.
Um
estudo do Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens,
uma iniciativa coordenada pelo 19 cidades entre as 50 mais violentas do mundo
Observatório de Favelas, realizada em conjunto com o Unicef, a Secretaria
Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e o Laboratório de
Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mostrou que
os adolescentes entre 12 e 18 anos têm quase 12 vezes mais probabilidade de ser
assassinados do que as meninas dessa mesma faixa etária. Os adolescentes negros
têm quase três vezes mais chance de morrer assassinados do que os brancos –
geralmente por arma de fogo.
Ao
mesmo tempo, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados em
2013 revelam que a polícia brasileira mata, em média, cinco pessoas por dia. É
uma das polícias mais violentas do mundo. Somente no estado de São Paulo, entre
2005 e 2009, a PM matou 6% mais que todas as polícias dos EUA juntas. O Brasil
aparece com 19 cidades entre as 50 mais violentas do mundo, segundo estudo de
uma ONG mexicana. No Brasil, mata-se mais do que em regiões em guerra. Segundo
a Anistia Internacional, são cerca de 56 mil homicídios por ano. Menos de 10%
desses casos são esclarecidos.
A
violência também é encarada por empresas como um excelente negócio. O Fórum
Brasileiro de Segurança Pública calcula que os custos com violência no país
chegam a R$ 258 bilhões. Os sistemas de segurança pública e privada investem,
cada vez mais, na compra de armamentos e equipamentos de prevenção, defesa e
combate. Cresce o uso de carros blindados pelas classes A e B. O Brasil tem
hoje quase três vezes mais vigilantes privados do que policiais civis,
militares, federais e bombeiros. Idem em relação às forças armadas.
A
indústria de armas e munições elegeu, no último pleito, 70% dos candidatos que
receberam doações legais de campanha. Dos 30 candidatos beneficiados pelo
setor, 21 saíram vitoriosos: 14 deputados federais e sete estaduais. Esses
fabricantes, cada vez mais ativos, financiaram políticos de 12 partidos em 15
estados – a maioria do PMDB e do DEM do Rio Grande do Sul e de São Paulo.
Somos
um país que viola direitos humanos. Há uma superlotação das prisões. Torturas e
maus-tratos são comuns. Não punimos os crimes da ditadura (ao contrário de
países vizinhos) e a impunidade costuma ser a norma diante dos excessos da
polícia violenta. Índios, negros e mulheres costumam ser vítimas da falta de
políticas públicas que combatam o preconceito, a discriminação e o ódio, que se
torna ainda mais flagrante contra a comunidade LGBT.
A
mídia, por meio de programas policiais sensacionalistas ou reportagens que não
primam por um mínimo de isenção e qualidade, com distorção de fatos, enfoques e
estudos, contribui para que se crie na sociedade um sentimento de
“prende-lincha-mata”, como se o ódio e a vingança pudessem levar a algum tipo
de solução. A inexistência de um debate mais qualificado nos veículos de
comunicação favorece o oportunismo dos setores mais violentos da sociedade e
amplia o espaço para a apresentação de propostas demagógicas, já
comprovadamente ineficazes.
Por
isso, mais do que repensar uma política de segurança para o país, é preciso
tentar compreender que tipo de sociedade nos tornamos. Sem menosprezar a dor de
quem é vítima da violência, é preciso perguntar de que forma estamos
contribuindo para perpetuar os mecanismos que a impulsionam, por omissão ou adesão
a um modelo de sociedade injusto, opressivo e excludente. Se não formos capazes
de enxergar que os grupos sociais apontados como agressores e violentos são os
primeiros a serem violentados, dificilmente haverá possibilidade de sonhar com
um país em que a igualdade, o respeito, a ressocialização, a educação e a
formação de cada cidadão se transforme na melhor arma para combater a
violência.
Basta
de violência, sim! Mas de qual violência estamos falando? Violência contra
quem?
Fonte: https://www.cartacapital.com.br
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