Onde foi parar o Brasil que
estava aqui quando o PT foi fundado, 40 anos atrás, ainda em plena ditadura? "Precisamos prestar
muita atenção neste momento, pois estamos definindo o país que teremos nos
próximos 40 ou 50 anos", alertou o economista Marcio Pochmann,
ex-presidente da Fundação Perseu Abramo, em palestra profética que fez em Porto
Alegre um ano atrás, ao analisar as perspectivas da esquerda para as eleições
municipais deste ano, que não são nada animadoras.
Para Pochmann, o PT perdeu o
bonde da história e não percebeu as profundas mudanças que passaram pela janela
nos últimos anos até a chegada da extrema-direita do capitão Bolsonaro ao
poder.
A dois meses da eleição,
perdido em seu labirinto, o PT não lidera as pesquisas em nenhuma das
principais capitais do país. É mais dramática a situação em São Paulo, onde o
partido corre o risco de não ir para o segundo turno e ainda perder a hegemonia
na esquerda para o PSOL, mas nas outras regiões do país o quadro não é mais
favorável.
O que aconteceu com o
partido que venceu quatro eleições presidenciais consecutivas neste século e
governou o país até quatro anos atrás? "A sociedade do final dos anos 70 e
início dos anos 80, que deu origem ao PT, não existe mais. Se seguirmos fazendo
as coisas do jeito que fizemos até aqui não teremos melhores resultados do que
os que já obtivemos", constata Pochmann, que foi candidato derrotado do
partido a prefeito de Campinas, em 2016.
A pá de cal naquela
sociedade civil organizada, que surgiu na Campanha das Diretas, em 1984, da
qual o PT se tornou a maior expressão partidária, foi dada com a reforma
trabalhista de Michel Temer, após o golpe de 2016, uma sentença de morte para
os sindicatos que deram origem ao PT e à CUT.
Quando Lula fala em defesa
da classe dos trabalhadores, como fez no 7 de setembro, é o caso de perguntar
de quem estamos falando.
Quatro entre cada cinco
trabalhadores não estão mais na indústria, que hoje representa menos de 10% do
PIB (menos do que em 1910), mas nas diversas áreas de serviços. Sem lideranças
e sem condições de reagir ao massacre da nova legislação trabalhista, que
praticamente acabou também com a Justiça do Trabalho, eles não se engajam mais
em lutas coletivas. Vigora a lei do salve-se quem puder.
O grosso do eleitorado não
está mais nas fábricas, mas nos shoppings, call-centers e no Uber ou
trabalhando por conta própria. Carteira assinada virou coisa do passado e quem
ainda tem emprego morre de medo de perder o salário no fim do mês. Passa longe
dos sindicatos. "Essa nova realidade não faz parte do discurso dos
sindicatos e dos nossos partidos. Estamos com uma retórica envelhecida",
afirma o ex-presidente da Fundada Fundação Perseu Abramo, um centro de estudos
e pesquisas do PT. Envelheceram as lideranças e os discursos.
A esquerda já não sabe como
chegar e o que falar para esse eleitorado individualista, conquistado pela
teologia da prosperidade das igrejas evangélicas dos Edires e Malafaias, em
lugar da teologia da libertação, de católicos como Frei Betto, meu guru. Ao
mesmo tempo, as seitas neopentecostais e as milícias avançaram no espaço
deixado aberto por movimentos sociais criados pelas pastorais da ala
progressista da Igreja católica, que teve um papel fundamental na formação do
partido.
Sem uma organização pela
base, nos locais de trabalho e nas universidades, o eleitorado ficou solto no
espaço à mercê dos líderes da "nova política", que prometem a
salvação aqui e agora, do "deixa que eu resolvo, contra tudo isso que está
aí". De que jeito? Liberando armas e munições para todos, abrindo as
porteiras para "passar a boiada" e cada um que se vire. Com bala,
porrada e bomba, a ordem é atropelar quem se puser no caminho - o Congresso, o
STF, as ONGs, as entidades que restaram na sociedade civil (ABI, OAB, CNBB).
Quem não é aniquilado, é cooptado
com gordas verbas federais, como está acontecendo com boa parte da mídia. Em
lugar de assembleias de trabalhadores, nos sindicatos e nos movimentos
estudantis, o povo começou a ir cada vez mais às assembleias de Deus para
buscar ajuda em territórios dominados pela milícia.
É com essas novas forças
políticas, que dominam as redes sociais, unindo governo com mercado financeiro,
igrejas evangélicas, policiais e militares, marombados de academias e invasores
de terras indígenas, destruidores da Amazônia e do Pantanal, que o país segue
em direção ao glorioso passado da ditadura.
Elio Gaspari poderia
escrever um novo volume da sua coleção sobre aquele período, agora revivido:
"A ditadura esculachada". Enquanto o atraso avança, o PT, primeiro
partido a abrir espaço para as mulheres na política, não é capaz de encontrar
nenhuma negra para formar chapa com Jilmar Tatto, seu candidato oficial em São
Paulo, neste momento de luta contra o racismo e o machismo.
E acabou formando uma chapa
de dois homens brancos, de meia idade, sem nenhuma expressão popular e sem ter
uma bandeira para empunhar na campanha. É a vitória do aparelho do partido, que
será derrotado nas urnas. A classe trabalhadora que deu origem ao PT não existe
mais. A sociedade civil organizada está hibernando. A classe média assalariada
deu lugar a PJs, pessoas jurídicas, e consultores sem vínculo empregatício.
Esta semana, por um desses
acasos do destino, se estivessem vivos, d. Paulo e Paulo Freire completariam 99
anos. Símbolos da resistência à ditadura, eles estariam tristes ao ver que
aquele Brasil solidário e justo, com o qual sonharam e ao qual dedicaram suas
vidas, perdeu-se
no horizonte.
Em seu discurso de Porto
Alegre, um antigo reduto do PT de outros tempos, Pochmann lembrou Habermas:
"Toda vez que perdemos a referência no horizonte, a gente se debruça sobre
amenidades. Temos hoje uma narrativa inapropriada que nos leva à acomodação e a
saídas individuais".
"E daí?",
perguntaria Bolsonaro. Confesso que também não saberia o que responder. Neste
momento, em que a luta coletiva por um Brasil para todos, que marcou a história
do PT, está numa encruzilhada da vida sem encontrar saídas, se eu votasse em
São Paulo não teria dúvidas em apoiar Boulos e Erundina, que pelo menos
representam uma esperança.
Ninguém vive sem esperança. Eleição
é sempre uma oportunidade para mudar a realidade, por mais adverso que seja o
cenário. Foi assim que o PT chegou ao poder, depois de muitas derrotas. Amanhã
será outro dia. Vida que segue.
Fonte: http://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho