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A democracia moderna foi
atravessada por um desafio inimaginável até pouco tempo: a ocupação da pólis
por seres irreais. Quem são esses usuários que diariamente emplacam temáticas
políticas nos trending topics do twitter, com uma capacidade quase imediata de
mobilização em torno de hashtags perfeitamente bem combinadas, perfeitas até
demais para serem verdade?
Há uma falha no teste do
pato. “Se ele parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então
provavelmente é um pato” – diz o ditado. E o usuário que se parece com eleitor,
reclama como eleitor, apoia como eleitor, mas usa hashtags milagrosamente
lançadas, em questão de minutos, aos assuntos mais comentados do momento? É
robô.
Tudo que acontece de mais
relevante na política nacional vira uma hashtag, ou mais provavelmente duas:
uma de apoiadores e outra de detratores. Inicia-se, então, a batalha digital do
dia.
Existem, porém, as batalhas
reais e as batalhas que nascem forjadas e se tornam reais. As primeiras não
deixam de interessar à análise do cenário dicotômico, mas as segundas merecem
especial atenção crítica. Robô não vota. Então por que importa tanto o tumulto
que ele faz? Porque a movimentação de usuários irreais tem o condão de pautar o
debate. A aparência de que um assunto está sendo comentado faz com que ele
passe a ser comentado de fato. Está feito o sequestro da pauta política de um
país.
A movimentação de uma
expressiva quantidade de usuários falsos tem a perigosa capacidade de criar uma
bolha inflacionária política ou eleitoral. O que significa isso? Que ela traz
uma falsa robustez a uma ideia, a uma pessoa ou a uma causa. Esse conjunto de
robôs desprovidos de título de eleitor cria uma “bolha” de apoiadores - frágil,
posto que mentirosa. Mas a demonstração da ampla adesão à ideia chama mais
gente, desta vez pessoas reais. É uma bolha inflacionária política e eleitoral,
na medida em que carrega uma pessoa nos ombros invisíveis de celulares
conectados a contas falsas e entrega a ombros verdadeiros de quem sentiu que
estava aderindo a um forte movimento, “que subitamente eclodiu”. Então,
pouquíssimo importa que robô não vota, não comparece a manifestação, não bate
panela na janela, desde que ele consiga fazer pessoas reais, capazes de tudo
isso, aderirem ao movimento.
Não pode ser subestimada a
grande susceptibilidade de uma pessoa real se juntar a um movimento de origem
falsa. As pessoas entram diariamente nas redes sociais em busca de um tema para
comentar. Não é mais só uma questão de programação comportamental, é também uma
questão de pertencimento. Se uma hashtag entra para os trending topics, para
muitos isso significa quase automaticamente que o assunto em torno dela merece
um comentário ou uma ação.
Muita ficção científica foi
produzida no passado, especulando sobre robôs usurpando empregos e até postos
de comando humanos; mas pouco se imaginou sobre robôs usurpando o debate
público humano, o debate sobre a própria forma de uma sociedade humana se
organizar e se deixar liderar.
Qual é o grande mal disso?
Justamente pela fugacidade do “assunto do momento”, a batalha política passou a
ser diária, pontual e pormenorizada. Houve um claro esvaziamento da política de
identificação de ideias e propostas, em favor da política de identificação de
posturas e falas, cotidianamente. É um rumo perigoso para se tomar: o debate
político deixar de ser sobre ideias e passar a ser sobre circunstâncias. A
transitoriedade do apoio gera graves crise de representatividade e de
capacidade de se liderar, pelo prazo necessário para fazer qualquer diferença.
Se esses fatos estão postos
e estamos falando de uma realidade enquanto ela acontece (vide batalha de
hashtags do dia), o que se há de fazer? Muito se debate, acertadamente, sobre
regulação, investigação e inibição da presença digital fake. Mas conhecem-se os
desafios de se controlar algo que é pouco rastreável, que desconhece fronteiras
territoriais e faz-se esbarrar em alcances jurisdicionais.
Sem dúvidas, a melhor forma
de encarar é escancarar. Não se questiona a importância de a comunidade digital
global continuamente trabalhar para evoluir em segurança, rastreabilidade e
confiança; e de as comunidades jurídicas amadurecerem os debates sobre
controle, responsabilização e desmobilização. Mas a contribuição mais eficaz e
imediata virá – e já tem vindo – das iniciativas de jogar luz sobre as trevas
da mobilização robotizada em torno de pautas políticas.
Não tem fidelidade
partidária no Partido dos Robôs sem Voto. É preciso apostar alto na “trollagem”
contra os robôs. Isso significa expor suas contradições, suas obviedades, suas
falhas, seus movimentos e suas inconsistências. Talvez seja essa uma boa
releitura moderna do enigma da esfinge. Precisamos decifrar as redes a serviço
do fake, sob pena de vermos devorado o debate público tal como se conhece. Nas
urnas: um homem, um voto. Nas redes: um homem, um post.
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