Do alto de décadas de
experiência, o jornalista Jânio de Freitas chamou-a de operação virada de mesa.
Seu fulcro ocorreu na quinta-feira (25/7). O ministro Sérgio Moro tentou, num
movimento de ousadia extrema, destruir os sinais cada vez mais abundantes de
que, quando juiz, agiu com parcialidade flagrante, visando interferir na
disputa pela Presidência e favorecer uma coalizão de forças que o levaria ao
governo.
Jânio reconstrói os fatos,
utilizando-se das próprias declarações (ou tuítes) do ministro. Em evidente
abuso de poder, ele apoderou-se dos registros de uma investigação que corria em
sigilo de justiça. Passou a disparar, para altas autoridades da República,
telefonemas nas quais as “alertava” para o fato de suas comunicações terem sido
supostamente vazadas por hackers.
É muito duvidoso que se
referisse apenas aos autos do processo. Tudo indica que se apoiou,
principalmente, em informações (e violações) produzidas nos EUA. Seus objetivos
eram claros: a) construir rapidamente um consenso em favor da destruição do
material; b) ainda mais importante, estigmatizar – e tornar politicamente
inócuas – as revelações feitas por The Intercept sobre sua conduta. O plano era
óbvio: tudo recairia na vala comum dos vazamentos produzidos por criminosos e,
portanto, de efeito nulo e divulgação condenável.
Mas a tentativa de Sérgio Moro
fracassou.
Primeiro porque, já pela
manhã, o jornalista Glenn Greenwald revelou a Veja diálogos que manteve com o
hacker que o abastece de informações. Ficou claro, então, que há em curso dois
vazamentos: o de The Intercept, que teve como foco os diálogos do procurador
Deltan Dallagnol no Telegram; e um outro, incomparavelmente mais vasto, que é
atribuído a pequenos estelionatários paulistas – mas só pode ser obra de
agentes muito mais poderosos. O segundo motivo do fracasso é a dignidade que
ainda resta no STF. Na tarde da quinta, o ministro Marco Aurélio Mello frisou,
em entrevista à jornalista Monica Bergamo, que Moro não tinha nem a mínima
autoridade para destruir o conteúdo das gravações, nem mesmo direito de acesso
a elas.
A operação virada de mesa foi,
em sua primeira tentativa, abortada. Pior, para Moro: começaram a surgir sinais
de que o feitiço poderia virar contra seu inábil urdidor. No fim de semana, a
Folha de S. Paulo lembrou que, de acordo com o princípio constitucional de
“ampla defesa” e segundo a jurisprudência do STF, os réus têm direito a obter e
invocar, em seu favor, mesmo as provas produzidas de maneira ilícita. Ou seja,
os registros das “centenas de violações de sigilo na internet” além de não
serem destruídos, teriam de aparecer. Talvez por isso, veio nova reviravolta
acrobática. Nas últimas horas, a hipótese de “cerca de mil” vazamentos,
afirmada com tanta certeza e alarde há poucos dias, começou a ser relativizada.
Agora seriam “algumas dezenas”, “talvez trinta”, dizem fontes da PF – e surge
uma nova explicação para o milhar antes propagado. Seriam 976 os números de telefone
existentes na agenda dos hackers-estelionatários (imagine quantos você possui…)
– e não a quantidade de autoridades invadidas…
Seja como for, o malogro da
operação virada de mesa deixou Moro totalmente a nu as ilegalidades praticadas
por Moro. Não são mais suposições a ser investigadas. São informações de
malfeitos que o ministro postou para que fossem difundidas – crente no sucesso
da pressão produzida. Falta-lhe, agora, toda autoridade moral para permanecer
ministro; e talvez o caso seja, como aventou Ciro Gomes, de prisão preventiva –
já que o ministro tentou claramente destruir provas de um caso em que é o
provável transgressor.
Mas então, por que Moro se
mantém? Aqui, é melhor evitar as afirmações altissonantes e genéricas, como “O
Estado de direito há muito tempo foi rompido”. Sim, foi – mas constatá-lo de
muito pouco serve. É preciso identificar claramente as forças e interesses que
se articulam para nos manter em estado de exceção.
A chave parece estar num
artigo desbravador de José Luís Fiori e William Nozaki. O Brasil tornou-se há
alguns anos, mostra o texto, alvo pioneiro da mudança de orientação estratégica
operada pelos EUA, visando a conservação de sua supremacia ameaçada. Esta
estratégia supõe declaradamente a “guerra híbrida”, as intervenções externas,
as formas “constitucionais” de golpes de Estado. A “luta contra a corrupção” é
o pretexto principal da cruzada. E Sérgio Moro, até há alguns anos um obscuro
juiz de primeira instância, ganhou destaque porque ligou-se aos planos
norte-americanos desde 2009, quanto o Bridge Project estabeleceu a
“colaboração” entre certas varas do Judiciário brasileiro e o Departamento de
Justiça dos EUA. A proteção que Washington procura lhe oferecer chega a
detalhes: como o esforço do consulado norte-americano, esta semana, para
dificultar viagem internacional dos filhos de Glenn Greenwald, o jornalista
cujas revelações incomodam o ministro.
Significa que ele e Bolsonaro
são imbatíveis? Certamente não. Em outro texto, escrito há dois meses, o mesmo
Fiori mostra que a virada estratégica de Washington fracassou em diversos
países onde foi adotada, sendo a “operação Bolsonaro" seu êxito mais
significativo. Em meio a uma coleção de derrotas, uma vitória rara, que pode
ser revertida.
Mas o enorme esforço que necessário
para tanto surge num ensaio dos sociólogos franceses Pierre Dardot e Fraçois
Laval. Moro e Bolsonaro não cairão nem por sua indigência intelectual e moral,
por suas suas patetadas, ou por seus atentados à Constituição ou às leis,
sugere o texto. Eles expressam um neoliberalismo transformado, que visa impor a
qualquer custo a lógica do capital em todas as esferas da vida humana e já
despreza a democracia e o direito. Este projeto não recua diante de suas
próprias derrotas – ao contrário, transforma-as em novas exigências. “Se a
austeridade gera déficit orçamentário, é preciso acrescentar uma dose
suplementar. Se a concorrência destrói o tecido industrial ou desertifica
regiões, é preciso aguçá-la ainda mais entre as empresas, entre os territórios,
entre as cidades. (…) Se a diminuição de impostos para os ricos ou empresas não
dá os resultados esperados, é preciso aprofundar ainda mais nisto”.
Para vencer esta ameaça –
expressa no espetáculo de horrores que parece se renovar a cada dia no Brasil –
talvez já não baste uma esquerda que se limite aos programas, estratégias e
táticas que marcaram os séculos XIX e XX. É o que veremos em breve, num próximo
texto.
Por: Antonio
Martins, jornalista.
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