Fundador do portal
bonifacio.net.br, o jornalista Aldo Rebelo explica por que se engaja num
projeto editorial de defesa dos valores e do interesse nacional. Sua avaliação
da conjuntura é a de que o Brasil atravessa não só uma grave crise
econômico-social, mas sofre uma desorientação que corrói qualquer esforço de
superação das nossas dificuldades. Ex-deputado por seis legislaturas, líder do
governo Lula na Câmara dos Deputados, de que também foi presidente, Rebelo
ocupou os ministérios da Articulação Política no governo Lula e os do Esporte,
da Ciência e Tecnologia e da Defesa nas gestões de Dilma Rousseff. Aos 63 anos,
ele assegura que sua perspectiva é de fé no Brasil, confiança em seu povo e de
centralidade da Questão Nacional para recolocar o País numa trajetória de
desenvolvimento autônomo e democrático.
Qual
o sentido de lançar um portal de defesa dos valores e do interesse nacional
nesse momento?
O interesse nacional continua
a ser o eixo em torno do qual gravitam as sociedades contemporâneas – em torno
do interesse nacional é que as nações hegemônicas do mundo orientam suas
decisões geopolíticas, suas iniciativas diplomáticas, econômicas, comerciais,
financeiras, científicas, tecnológicas e culturais. O Brasil construiu o Estado
Nacional, mas ainda está em processo de criar e inventar a Nação. Deu um passo
importante com a Independência, na figura do patriarca José Bonifácio de
Andrada e Silva, o articulador, o pensador e o político que liderou a
independência do nosso país. Aliás, é bom destacar que o portal tem como seu
patrocinador o Instituto José Bonifácio, criado ainda em 2004. E quando estamos
às vésperas dos 200 anos da Independência do Brasil, a atualidade da Questão
Nacional, a atualidade do José Bonifácio de Andrada e Silva convocam a
inteligência do País, as forças políticas, espirituais e intelectuais,
preocupadas com a construção nacional, a estabelecer a centralidade, o primado
e a prioridade da Questão Nacional como eixo para a construção de uma sociedade
socialmente equilibrada, democraticamente avançada e capaz de distribuir entre
os seus membros os frutos do desenvolvimento, do progresso e do esforço
coletivo.
A
Questão Nacional é de fato uma ideia-força nesse tempo de globalização, em que
o mais importante para um país emergente parece ser inserir-se competitivamente
na economia global?
Duas observações: a primeira é
que essa própria globalização, a globalização financeira, a globalização
tecnológica surge do interesse das grandes nações hegemônicas do mundo. Claro
que se apoia no desenvolvimento da ciência, da tecnologia, dos meios de
comunicação, mas tem como origem o interesse nacional de países fortes. E a
outra observação é que o país que alcançou o maior sucesso no seu processo de
inserção internacional, a China, o fez a partir do seu interesse nacional pelo
seu desenvolvimento, pelo bem-estar da sua população. A Muralha da China é uma
atração turística, ela não funciona para separar os interesses do mercado dos
interesses do Estado na sociedade chinesa.
Aliás, a China é o país que mais
distribui renda, que mais aumenta salário, que mais produz bilionários. É o
país onde o Estado tem mais presença e mais força para disciplinar a vida
econômica e social. E ao mesmo tempo, o país onde os instrumentos de mercado
têm alcançado maior êxito na busca desses objetivos, ou seja, ali funciona o
princípio bíblico: ao mercado o que é do mercado e ao Estado o que é do Estado.
O mercado se apoiando nos instrumentos de Estado para alcançar seus objetivos.
E o mercado também como parte dos interesses da sociedade chinesa, ou seja, dos
interesses comuns. No Brasil nós fabricamos artificialmente essa contradição,
transformamos um conflito natural numa contradição antagônica. Como se o
mercado fosse uma ameaça ao Estado e o Estado fosse o elemento que iria impedir
ou dificultar as ações do mercado. Acho que o Brasil precisa de um Estado forte
para cumprir seus objetivos, e precisa estimular as ações de mercado para gerar
renda, emprego, divisas, trabalho para a população.
Essa
globalização está sofrendo uma retificação atualmente, a partir da política do
presidente Trump nos Estados Unidos e do reforço das defesas na Europa? Agora
mesmo a Alemanha anunciou que vai reforçar a defesa da sua indústria.
É que a globalização
financeira, essa globalização cibernética como poderíamos chamar, que sucedeu a
outras etapas de globalizações anteriores, como a globalização a vela promovida
por Portugal e Espanha nos séculos XV e XVI, a globalização da máquina a vapor
da Revolução Industrial, a globalização do petróleo, esta última ganhou força
numa operação ideológica, política e geopolítica, que foi o fim da União
Soviética. E ela nasceu como uma grande promessa, como uma grande esperança de
gerar um mundo de maior progresso, de mais bem-estar, mais pacífico e de mais democracia.
Esses objetivos e promessas foram frustradas. A verdade é que o mundo não
conheceu mais bem-estar, as ameaças de conflitos raciais, nacionais, étnicos
mais do que nunca estão presentes. E a democracia parece ameaçada por esses
distúrbios que o mundo vai conhecendo. Eu acho que isso gerou uma crise de
confiança, de credibilidade nas promessas da globalização. Agora mesmo, ao
celebrar seus 200 anos, a revista liberal Economist lançou um grande manifesto
em que propõe de fato uma linha de retificação. Reconhece que a globalização só
produziu efeitos positivos para as atividades financeiras. E que isso gerou
crise no mundo inteiro, países quebraram e até os Estados Unidos enfrentaram
uma crise bancária e financeira de grande envergadura. Isso tudo gera
questionamentos e propostas de retificação.
Como
vê o fato de o presidente de um país como a China, que tem um projeto nacional
muito bem definido, vá ao Fórum de Davos defender a globalização, e presidente
dos Estados Unidos, que representa um país que a rigor criou todos esses
grandes mecanismos da globalização, vá a esse mesmo fórum falar contra a
globalização?
A China alcançou grandes
benefícios com a globalização. A sua economia foi altamente internacionalizada,
sem que ela perdesse o controle do processo. Ela criou recentemente uma
iniciativa em torno daquela rota e do cinturão para se integrar comercialmente
com todo mundo. Eu acho que isso terminou assustando de certa forma os Estados
Unidos. Ou seja, é uma grande ambição, um projeto muito ousado. A China se
beneficiou ou se beneficia há muito tempo do processo de troca.
Foi com a abertura dos Estados
Unidos para a China, na época do presidente Richard Nixon, que apareceu a
grande oportunidade de aquele país adquirir tecnologia que não conhecia e nem
dominava em algumas áreas, inclusive de serviços. Esse esforço continuou, e
hoje acho que os americanos devem ter chegado à conclusão de que chega, basta.
Ou seja, o desenvolvimento tecnológico da China, principalmente na área de
tecnologia da informação, pode ser visto pelos americanos como uma ameaça.
Então a China que conheceu
nessa fase taxas de crescimento elevadas, não só econômicas, mas também
conquistas científicas e tecnológicas, como resultado desse processo,
evidentemente vai se defender. Acho que os Estados Unidos passaram a ver isso
como uma ameaça, e aí a reação aparentemente inesperada e vista como desastrada
do governo Trump, que apresentou um projeto de remanufatura, de
reindustrialização.
E de proteção das suas
empresas de alta tecnologia, que são as maiores do mundo, diante da chegada das
grandes empresas e das gigantes chinesas. Não é por acaso que um dos alvos
dessa ofensiva dos Estados Unidos é exatamente a gigante chinesa Huawei. Então
os Estados Unidos, que começaram como os grandes protagonistas da globalização,
se julgam hoje numa posição defensiva e reagem.
Mas
você acha que esses movimentos antiglobalização que estão acontecendo em
diversos lugares do mundo, e em geral protagonizados por forças conservadoras,
fazem algum sentido? Ou seja, é possível como o próprio ministro das Relações
Exteriores do Brasil tem colocado, reverter o processo de globalização?
Não sei como vai se reverter
um processo de globalização. Como é que você poderia reverter o processo da
globalização a vela promovida por Portugal e Espanha? Como é que se reverteria
o processo de globalização promovido pela máquina a vapor, pela marinha
mercante a vapor? Pelas ferrovias, pelo telégrafo? E hoje pela eletrônica, pela
cibernética?. É difícil. O problema é administrar quem ganha e quem perde com
isso. Eu acho que a reação das pessoas não é contra a globalização, mas contra
os efeitos da globalização no emprego, no salário, na economia dos países. As
pessoas se sentem excluídas, ou seja, o movimento tornou-se excludente.
E quando as forças chamadas
progressista ou de esquerda não assumem a defesa dos interesses dos seus
trabalhadores, das suas nações, forças conservadoras assumem. E o povo vai
atrás, porque se sente representado por elas. Não é por acaso que uma parte dos
votos do Partido Comunista Francês migrou para essas correntes de direita,
porque elas passaram a defender a França, a economia da França nesse movimento
recente dos coletes amarelos Forças de esquerda diziam que o movimento dos
coletes amarelos era fascista porque cantava o hino nacional e usava a bandeira
francesa.
Aqui, durante a eleição do
Bolsonaro, não teve gente que dizia que não era para vestir verde e amarelo,
porque são cores da direita? Você não pode deixar que os símbolos nacionais,
que a identidade nacional, que os interesses nacionais se transforem em
apanágio de ideologias de direita, como tem acontecido. Você tem que deixar
claro o que é o interesse nacional. Nessa etapa histórica da existência das
nações não se pode deixar de defender o interesse nacional. Não é apenas o
território, a economia, o emprego, a cultura, o idioma, a memória, a história.
Acho que uma parte da esquerda embarcou em uma outra globalização, como se as
lutas nacionais não fizessem mais sentido: a globalização dos povos, e isso
sinceramente é uma coisa falsa.
Você
defende a centralidade da Questão Nacional, mas como é possível pôr ou repor
essa centralidade na agenda do Brasil?
O Brasil viveu em torno da
Questão Nacional conflitos recorrentes. Na primeira iniciativa, com a
Independência, o próprio José Bonifácio de Andrada e Silva concebeu um projeto
nacional de desenvolvimento econômico, de industrialização do Brasil, de
emancipação dos escravos, de integração dos índios, de convivência pacífica com
os vizinhos, de política externa independente. E foi derrotado. O Brasil viveu
durante as décadas da Regência e do Segundo Reinado um processo de estagnação.
Uma nova tentativa veio
acontecer com a Proclamação da República, quando houve também o esboço de
colocar no centro da construção do País a centralidade da Questão Nacional.
Primeiro, no governo do Deodoro, em seguida no de Floriano. A gestão de Rui
Barbosa no Ministério da Fazenda concebia um projeto de industrialização do
Brasil, mas esse projeto também foi derrotado. E só foi retomado com êxito em
1930, no clico do presidente Getúlio Vargas.
Mais adiante esse processo foi
novamente abortado. Mesmo não sendo um projeto nacionalista, o governo de
Juscelino também sofria muitas pressões de setores entreguistas e
antinacionais. Isso deu em 1964, que foi também o período de muita contradição.
O governo Geisel tinha gestos e iniciativas nacionais, mas, encerrado o seu
período, o sucessor Figueiredo deu por fim o período militar. O governo Lula
também era um governo de contradição, ou seja, a Questão Nacional era abordada,
mas não se revestiu de centralidade, era a questão social que predominava.
O Brasil continuou num
processo de desindustrialização, de perda de capacidade científica e
tecnológica. No governo Dilma essa contradição continuou. O governo Bolsonaro
também não tem como foco, como objetivo a Questão Nacional. Então a
centralidade da Questão Nacional resta como um desafio dos patriotas, das
forças nacionais, que têm que trabalhar em todo o terreno onde a possibilidade
se apresenta: na política, no plano intelectual, onde for possível. É esse o
nosso desafio.
Mas
você identifica uma situação de desorientação generalizada no Brasil, tal qual
apontou de um manifesto à nação que lançou no ano passado. Isso continua? Como
se pode superar essa desorientação?
A desorientação continua.
Aliás, acho até que essa desorientação se agrava. Ou seja, o País vai se
dividindo em torno de uma agenda absolutamente secundária e perde o rumo em
coisas importantes da nossa tradição, da nossa memória. Tomemos apenas dois
exemplos, no caso da política externa. O governo avança para uma aliança quase
que unilateral como o nosso vizinho de hemisfério mais importante, que são os
Estados Unidos da América. O ministro das Relações Exteriores se declara
admirador do presidente Trump e se coloca a serviço da geopolítica dos Estados
Unidos, desprezando a nossa história e a nossa Constituição.
O artigo quarto da
Constituição, por exemplo, estabelece que o Brasil se rege por alguns
princípios, entre eles: o da independência nacional, o da autodeterminação dos
povos, ou da não intervenção, o da igualdade entre os Estados, a defesa da paz,
a solução pacífica dos conflitos. Diz ainda que o Brasil buscará integração
econômica, política, cultural com os povos da América Latina, visando à
construção de uma comunidade latino-americana de nações. Aliás, esse artigo
quarto está lá na parede da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional
da Câmara dos Deputados. Foi fixado quando o deputado Franco Montoro, que era
um latino-americanista, presidiu à Comissão.
José
Bonifácio esboçou isso no Manifesto da Independência que ele escreveu e foi
lido por Dom Pedro no dia 06 de agosto de 1822, dedicado às nações amigas. De
certa forma ele foi um precursor também do Mercosul?
José Bonifácio é considerado o
avô da nossa diplomacia, o primeiro a conceber a chamada política externa
independente. Ele deu essa orientação para os representantes do Brasil nas
legações de todo mundo, da Inglaterra à Argentina. Depois foi seguida pelo
barão do Rio Branco, que solucionou pacificamente nossas demandas de fronteira
com os vizinhos. Com a França, o Peru, a Argentina, com todos eles nós
encontramos soluções pacíficas, baseadas na arbitragem.
Aliás, há um texto do Gilberto
Freire de 1963 intitulado Brasil, destino de um país mediador, que diz que o
Brasil tem essa vocação. Ou seja, o Brasil está destinado a ser mediador dos
grandes conflitos civilizatório do mundo, por ser uma nação-síntese. Aqui está
presente a civilização portuguesa, a indígena, a africana. Depois nós recebemos
as influências dos asiáticos e outros europeus. Essa vocação agora está sendo
abandonada por um Itamarati que passou a desprezar toda nossa memória, tradição
e história.
O Brasil sempre foi um país
ouvido com atenção no mundo das relações externas. Nós perdemos esse
protagonismo, diminuímos de tamanho perante o mundo, e a diplomacia brasileira
diminuiu de tamanho dentro do próprio país. A doutrina de política externa foi
incorporada pela doutrina de defesa. A Política Nacional de Defesa, aprovada
pelo Congresso, já na introdução estabelece que o Brasil privilegie a paz,
defenda o diálogo, a negociação para a solução de controvérsias. Estabelece
como princípios a solução pacífica das controvérsias, o multilateralismo, a
integração sul-americana. A Constituição, no artigo quarto, fala da integração
latino-americana. A Política Nacional de Defesa fala de integração
sul-americana. Por que? Por que leva-se em conta que temos 17 mil quilômetros
de fronteiras, com 10 vizinhos.
Vejamos o caso da Venezuela.
Nós temos 2.200 quilômetros de fronteira com aquele país, uma linha maior do
que a distância entre São Paulo e Salvador. Nessa área há reservas indígenas
demarcadas, tribos binacionais que transitam entre os dois países. Onde está
presente também o risco de ilícitos internacionais.
O que é que aconteceu? Numa
reunião em Lima o Itamarati simplesmente, sem avisar o Ministério da Defesa,
cancelou toda a cooperação militar entre o Brasil e a Venezuela, anulando a
diplomacia de defesa. A diplomacia de defesa e seus adidos militares existem
porque um incidente na área comercial tem uma consequência limitada, alcança
apenas os interesses comerciais. Mas um incidente na área militar pode ter
consequências graves e imprevisíveis, por isso é que existe essa diplomacia de
defesa. E a Política Nacional de Defesa estabelece exatamente a necessidade de
a diplomacia militar operar junto com a diplomacia tradicional, para evitar
esse risco.
Então esse é o testemunho,
essa é a demonstração da nossa desorientação, da nossa incapacidade de perceber
o que é importante para Brasil. Claro que há alcance em outros episódios; as
declarações da ministra responsável pelos Direitos Humanos criam também um
nível de confusão muito grande. Então a sociedade vai sendo polarizada em torno
dos debates secundários. O Brasil vai se tornando, a partir de uma doutrina, de
um pensamento importado das universidades dos Estados Unidos, numa nação
bipolar, dispersando inclusive a nossa herança mestiça, a nossa herança
indígena e africana…
Está
falando das lutas identitárias?
…lutas identitárias que nós
importamos, ou seja, nós estamos transformando o Brasil em um país de brancos e
negros. Está em curso um genocídio cultural do mestiço, da identidade da
mestiçagem no Brasil. Se você for olhar, nesse país a flora, a fauna,
sobrenomes de famílias, nomes das ruas, de acidentes geográficos são marcados
pela presença indígena, pelo tupi…
…os nomes da flora e da fauna
são majoritariamente de origem tupi…
…Isso, e muitos de famílias
–Tamandaré, Tupinambá, Tibiriçá, Tocantins, Guarani, Caiová, etc. –sobrenomes
indígenas. Tudo isso deixou de fazer sentido no Brasil, para a Academia, para
os meios de comunicação, para setores da esquerda, porque o Brasil virou um
país bicolor. É esse o conceito que nós importamos da América. …Caboclos ou
mamelucos construíram o Brasil nas costas. O povo é mestiço por excelência, mas
essa qualidade está sendo desdenhada pela bipolaridade racial importada… Isso
também é parte da desorientação.
Essa
última resposta suscita duas questões. Primeira, como o Brasil deve se
comportar nessa crise da Venezuela?
O Brasil deve se comportar
orientado pela sua vocação de país mediador. Nem no conflito envolvendo as FARC
na Colômbia, que era uma organização fora do Estado, nem ali nós tomamos uma
posição como a que assumimos no caso da Venezuela. Ou seja, há na Venezuela um
conflito institucional entre o parlamento, a Constituinte, a Suprema Corte, a
Procuradoria da República, o Poder Executivo, o Judiciário – e o Brasil
resolveu tomar partido.
A Venezuela virou um palco de
disputa de uma nova guerra fria, por conta da grande bacia energética, a maior
bacia de petróleo do mundo que está sob sua guarda. E com os interesses dos
Estados Unidos e de outras potências o Brasil resolveu assumir um lado. Nós
mediamos guerras e conflitos entre o Peru e o Equador, por exemplo, mas agora
abandonamos esse papel, somos parte do conflito numa área de grande interesse.
Se houver ali um conflito internacional, quem garante que ele não pode migrar
para o território brasileiro, numa área de 2.200 quilômetros de fronteira, com
baixa densidade demográfica e pequena atividade econômica?
Corremos
o risco de uma imigração massiva, por exemplo?
Entre outros riscos, e esse já
começou. Aliás, por falar em diplomacia de defesa, diplomacia fez o general
Zenildo Zoroastro de Lucena, ministro do Exército do governo Fernando Henrique,
quando batizou com o nome do Simón Bolívar um Batalhão de Engenharia de
Roraima. Recentemente, o então ministro da Defesa Silva e Luna atravessou a
fronteira para encontrar-se com o ministro da Defesa da Venezuela e tratar da
crise migratória na fronteira. É isso que o Brasil precisa fazer. E não ser
porta-voz da ala radical do Partido Republicano dos Estados Unidos, ou de
outros interesses embutidos nesse conflito com a Venezuela.
E
qual seria a solução interna da própria Venezuela resolver a crise?
Cabe à Venezuela escolher. Nós
temos no mundo inteiro situações institucionais muito difíceis. No Egito, na
Arábia Saudita, no Iémen, na Líbia, na Síria…. E o Brasil tem que se orientar
pelo que diz a Constituição e a Política Nacional de Defesa.
E
quanto às propostas da União Europeia e Rússia, Uruguai e México de se fazer
uma mediação?
Eu acho que o México e o
Uruguai apontaram uma solução mais adequada, ou seja, que a oposição e o
governo da Venezuela encontrem um caminho para pôr fim ao impasse. E nós
podíamos fazer um esforço nesse sentido, e não dizer que temos lado.
A
outra questão suscitada, que voltou à ordem do dia com mais força, é : como o
Brasil deve se relacionar com os Estados Unidos?
Deve ser uma relação de
cooperação, de confiança, de amizade, de respeito. Considerando que há disputa,
ou seja, são duas nações cujos interesses nem sempre vão coincidir. Eu vi
recentemente o comandante da Marinha dizer que o Brasil participou de três
guerras ao lado dos Estados Unidos, porque ele considerou a guerra fria, e que
deveria provavelmente se preparar para participar da quarta. É uma avaliação
unilateral.
É verdade que lutamos junto com os Estados
Unidos durante a Segunda Guerra. Antes disso, Estados Unidos apoiaram o esforço
de construção da República no Brasil. O marechal Floriano Peixoto comprou e
artilhou uma esquadra dos Estados Unidos para enfrentar o bloqueio naval do
porto do Rio de Janeiro. O grande poeta Walt Whitman saudou com um belo poema a
proclamação na República do Brasil, fazendo alusão ao encontro das duas
constelações, que são as estrelas da bandeira americana e da bandeira do
Brasil.
Quando Frei Caneca foi
fuzilado, ao dele foi fuzilado um cidadão americano, pois havia uma
participação aberta dos Estados Unidos na Confederação do Equador. Aliás, com a
possibilidade inclusive de envio de armas, de apoio diplomático à Confederação
do Equador. Em 1964 o governo americano cogitou de uma intervenção aberta no
Brasil, por meio de uma esquadra que estaria disposta a promover a intervenção,
caso a queda do governo João Goulart não se consumasse. Dois marinheiros
americanos cruzaram e fizeram uma navegação pelo Rio Amazonas no século
dezenove.
Aliás, há uma carta do Dom
Pedro II à condessa de Barral, dizendo que não ia permitir a abertura da
navegação do Amazonas, exatamente receoso da instalação de possessões, de
postos militares na bacia do Amazonas por parte de potências estrangeiras, como
a Inglaterra e os Estados Unidos. Na crise do Acre, já em pleno século XX, uma
canhoneira americana singrou a bacia do Amazonas em busca do Rio Branco e
chegou a Manaus.
O comandante da canhoneira,
que não conhecia a navegação do Amazonas, deu nacionalidade a dois práticos
amazonenses que juraram a bandeira dos Estados Unidos, para conduzir a
canhoneira pela calha do Rio Amazonas. Então temos uma história conflituosa. O
presidente Geisel denunciou o acordo de cooperação militar com os Estados
Unidos, o que levou o governo Carter a enviar a dona Rosalynn Carter para
iniciar o processo de isolamento dos militares no Brasil.
Não é possível, portanto,
fazer concessão unilateral aos interesses americanos. Até isenção de visto
querem conceder, sem reciprocidade aos brasileiros. Devemos ter todo o
interesse em manter uma relação de cooperação, de amizade com os Estados
Unidos. São os nossos vizinhos mais importantes de hemisfério, mas precisamos ter
consciência de que nem sempre os interesses dos dois países coincidem.
Disputamos, por exemplo, o mercado mundial de comodities agropecuárias, e eles
não são concorrentes tão leais…escalam suas ONGs ambientalistas para conspurcar
nosso agronegócio.
Mas o Brasil deve ter como
questão de princípio irrevogável a desmilitarização do nosso subcontinente. Não
podemos admitir uma base americana em nenhum país da América do Sul. O que
impediria que, sendo construída uma base americana, não fosse construída em outro
país uma base chinesa, uma base russa? Isso para o Brasil seria um
constrangimento muito grande.
Então
o antiamericanismo seria uma doença infantil do nacionalismo?
Não podemos ser
antiamericanos, não temos porque. Ou seja, o Brasil tem até uma certa admiração
pela história, pela construção dos Estados Unidos. Já os republicanos admiravam
o esforço de construção nacional. Nós acompanhamos a cultura dos Estados
Unidos, dos seus escritores, do seu cinema, sua música. Isso é uma relação de
respeito entre os povos, entre grandes virtudes na construção dos Estados
Unidos. Mas há também o interesse do império, o interesse da superpotência.
Aliás, em 1903 a Inglaterra,
Alemanha e a Itália impuseram um bloqueio à Venezuela por conta do não
pagamento de dívidas. E quando a Venezuela tentou reivindicar a doutrina
Monroe, aquela da “a América para os americanos”, os Estados Unidos disseram:
“Não, não se aplica nesse caso. Para pagamento de dívida a doutrina Monroe não
se aplica. Só se aplicaria se houvesse uma ameaça de recolonizarão de algum
país da América Latina”. E o ministro das Relações Exteriores da Argentina,
acho que era Luís Maria Drago, disse: “Não, se aplica sim. Nós não podemos
admitir intervenção militar em nenhum país por conta de dívida. No caso de dívida
tem que ser buscada uma solução pacífica, negociada”.
E a Guerra das Malvinas? Os
Estados Unidos apoiaram a Inglaterra abertamente. Uma posição diferente da do
Brasil, que não permitiu que a sua diplomacia e as suas Forças Armadas
oferecessem suporte para a intervenção inglesa. Eu fui ministro da Ciência e
Tecnologia, ministro da Defesa, do Esporte, presidente da Câmara, e em todos
esses momentos procurei estabelecer relações de cooperação e de alto nível com
as autoridades dos Estados Unidos. E digo que sempre fui bem-sucedido, foi uma
experiência muito cooperativa. Agora, sempre tive consciência das contradições
e dos conflitos que envolvem essa relação.
Você
diz que as principais rupturas na história do Brasil se deram com a união de
forças heterogêneas. Pode explicar isso?
O Brasil é um país com muitos
contrastes, desequilíbrios e desigualdades. O denominador comum para remover os
obstáculos nos momentos de crise é a reunião de forças heterogêneas. Por que?
Porque nenhuma força determinada nenhum conjunto de forças do mesmo campo tem
condições de empreender sozinha as transformações profundas que de que o Brasil
necessita. É necessário ampliar o arco e reunir forças de diferentes nuanças
ideológicas.
Se quisermos tomar um episódio
remoto, vamos à luta pela expulsão dos holandeses do Nordeste no século XVII.
Houve ali a primeira reunião de forças heterogêneas. Ao lado dos generais das
Coroa portuguesa, como Matias de Albuquerque, lutaram os fazendeiros, liderados
por João Fernandes Vieira, o terço dos índios, comandado pelo grande general
Filipe Camarão, o índio Poti, e o terço dos negros libertos, de Henrique Dias –
todos abençoados pelo padre Antônio Vieira. Até o bandeirante Raposo Tavares
foi de São Paulo à Bahia lutar contra os holandeses.
Essa aliança tornou possível
que um exército de guerrilheiros derrotasse uma força militar tradicional, mais
bem treinada e equipada, de uma grande potência na época. A aliança heterogênea
derrotou os holandeses, marcando aquilo que o Gilberto Freire diz: naquele
momento o Brasil escolheu ser um só e não vários. Foi ali que foi feita a
escolha. Para Barbosa Lima Sobrinho, foi nosso primeiro movimento nativista.
E aquele mesmo general Zenildo
Zoroastro de Lucena – pernambucano, ministro do Exército do governo Fernando
Henrique, que batizou com o nome do Simón Bolívar um batalhão de Roraima –,
criou o posto de fundadores do Exército para aqueles três generais, Fernandes,
Poti e Henrique. Os fundadores do Exército Brasileiro são os brancos, os índios
e os negros que lideraram a guerra contra os holandeses, gênese da mestiçagem
de nossa população.
Na Independência também houve
uma aliança muito heterogênea, de setores conservadores e progressistas. A
aliança se repete na Abolição e na proclamação da República, quando fazendeiros
de São Paulo uniram-se a militares positivistas e ainda com os republicanos
radicais do Rio de Janeiro, a classe média, os trabalhadores da época.
A Revolução de 1930 foi outra
aliança heterogênea, quando um grande estancieiro do Rio Grande do Sul, Getúlio
Vargas, liderou forças urbanas e militares num processo de retomada da
construção nacional. Houve também alianças heterogêneas em 1964, desta vez para
um retrocesso democrático. E a aliança heterogênea que redemocratizou o país em
1984.
A
sua proposta é reunir hoje forças heterogêneas para tirar o país dessa
desorientação e promover o desenvolvimento?
Não há outro caminho. As
nossas experiências mais bem-sucedidas são as de união de forças heterogêneas.
O governo Lula não era uma união dessa natureza? Que era o vice-presidente José
Alencar, senão um grande industrial, presidente da segunda principal federação
de indústria do País. a de Minas Gerais? Havia também uma estrela do
agronegócio, Roberto Rodrigues. Outro, o Furlan na Indústria e Comércio. Era
essa a aliança do governo Lula. Embora não tivesse a centralidade da Questão
Nacional, era uma aliança ampla. Novamente, a retomada do Brasil, o
relançamento do Brasil num projeto nacional, autônomo, democrático e
socialmente avançado só é possível com uma aliança de forças heterogêneas.
Como
é possível fazer essa aliança num país com tanta desigualdade?
Quando o País fez no passado
essas alianças heterogêneas era ainda mais desigual do que hoje. A aliança se
faz inclusive para remover essas desigualdades. Por que pressupõe múltiplas
concessões entre os seus integrantes, ou seja, o país precisa se desenvolver e
isso é um interesse dos empresários, dos industriais, dos fazendeiros, mas é
também interesse dos pobres.
Desenvolvimento gera emprego,
expectativa e esperança de progresso. O fruto desse desenvolvimento tem que ser
distribuído de maneira equânime. O desenvolvimento é um fator de estabilidade
institucional, ajuda a consolidar a democracia. Então acho que a Questão
Nacional pode gerar esperança, senão para todos, para quase todos.
Mas
as nossas chamadas elites têm a compreensão e podem vir a ter a determinação de
participar desse movimento?
Já tiveram em algum momento,
em outros não tiveram. Na época da Independência não havia quem representasse
ou quem fosse a expressão mais elevada dessa elite que o José Bonifácio, porque
era educado, era rico, era branco, era culto. Ele foi a cabeça desse processo.
A Abolição e a República também tiveram uma participação importante de setores
da elite, principalmente da burguesia cafeeira de São Paulo. Em 1930, foi, como
disse, um Getúlio representante da elite agrária do Rio Grande do Sul. Mas
houve momentos em que essa elite se desorientou e trabalhou contra os
interesses nacionais.
E
as forças políticas organizadas, elas se engajariam num movimento dessa
natureza?
Algumas estão desorientadas
completamente. Há uma direita que olha para Miami como se aquilo fosse o
destino manifesto, um paraíso. E há uma parte da esquerda que olha para Nova
Iorque, para as políticas identitárias e multiculturalistas. Mas existe um
ambiente de muita fertilidade na sociedade brasileira, na intelectualidade,
setores dos trabalhadores, do movimento sindical, das igrejas e do
empresariado, que julgam que a Questão Nacional é decisiva.
Você
tratou de passagem, mas a pergunta é indispensável: como vê o governo
Bolsonaro?
O governo Bolsonaro é o
resultado da desorientação do País, da crise que atingiu as instituições
políticas, e a política como expressão e como forma da democracia do País.
Portanto padece dos conflitos inerentes a esse tipo de processo, ou seja,
sempre que se juntam forças heterogêneas sem um objeto claro, quando o objetivo
é apenas eleitoral, apenas derrotar um adversário, mas não há um programa, não
há um projeto, e é esse o caso, isso imediatamente vai estabelecer um conflito.
Existem setores liberais,
operadores do sistema financeiro com grande influência no governo, que têm
interesse apenas em privatizar, em reduzir o papel do Estado, em reduzir
custos. E ao mesmo coexistem setores militares, representando uma instituição
de Estado. Força Armada é uma instituição de Estado, só faz sentido se existir
Estado. Se não existir Estado, qual o sentido de Forças Armadas? Para quê?
Há um partido criado para
apoiar o presidente da República que vive em conflito, se comporta no governo
como se estivesse na oposição. Já vivemos essa aliança em outros momentos,
entre militares positivistas e setores liberais. Vivemos também em 1930. Aliás,
é interessante notar que o governo que mais fortaleceu o Estado no Brasil, o de
Getúlio, chegou ao poder por um pacto que se chamava Aliança Liberal.
Depois essa aliança formou-se
novamente para derrubar o presidente João Goulart e instituir o governo
militar, outra vez entre militares e liberais. Depois os liberais se aliaram
com a esquerda para derrotar os militares em 1984. E agora se juntaram de novo
contra o PT, contra a ameaça de eleição do Lula. O conflito decorrente da falta
de um objetivo maior já se estabeleceu, ou seja, o governo mal começou e o
desentendimento está aberto.
Existe desorientação, por
exemplo, entre a área de política externa e a doutrina dos militares. Não se
pode admitir que o ministro da Defesa do Brasil recentemente, no governo Temer,
tenha atravessado a fronteira para ir conversar com o ministro da Defesa da
Venezuela, e meses depois o ministro das Relações Exteriores proclame que o
governo da Venezuela é um inimigo a ser abatido. Há conflito entre as
declarações do ministro sobre a China e a contradita do vice-presidente da
República. Conflito sobre a relação com os árabes. O ministro diz uma coisa, o
vice-presidente da República, que é um militar, diz outra. Além dos outros
desentendimentos mais no plano institucional, partidário, congressual. Então é
uma situação complicada.
Para
encerrar: é fácil observar que na sua trajetória mantém-se uma fé
inquebrantável no Brasil. Você nunca se decepciona, nunca pensa em desistir?
Não. Muitas vezes me
decepcionei, mas sigo o conselho do ensaísta e poeta mexicano Alfonso Reyes,
que serviu no Brasil nos anos 1930 como embaixador: devemos nos mirar no
comportamento dos marinheiros durante a tempestade. Temos de olhar na linha do
horizonte. Nos momentos de tormenta o marujo não pode olhar para o casco do navio,
senão se embriaga, fica mareado, se desorienta. Então nós temos que olhar na
linha do horizonte. O Brasil é um país com grandes qualidades civilizatórias,
grandes virtudes.
Um sociólogo americano que
esteve aqui durante o regime militar, quando não havia liberdades políticas,
partidária, de imprensa, observou o seguinte: era o país com a maior promessa
de democracia do mundo. Exatamente porque essa promessa de democracia nascia da
nossa origem, do nosso processo civilizatório, da nossa miscigenação. Não é a
coisa é do sangue, é da cultura. Então eu vejo o Brasil com otimismo, um
otimismo crítico, mas muito otimismo. Olho para o mundo e não vejo um país
destinado a dar mais certo do que o Brasil. Não estou dizendo nenhuma novidade,
apenas reproduzo as visões proféticas de um Gilberto Freire.
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