Viciados na lupa fiscal,
analistas de diferentes matizes se dedicaram a debater a consistência entre o
novo programa e o famigerado teto dos gastos públicos, repetindo e disseminando
o discurso, de interesse do governo Bolsonaro, de que estaria sendo instituído
um novo Bolsa Família. Nada mais distante da realidade.
Em seus 18 anos de
existência ampliou seu alcance, evoluiu na composição de seus benefícios e na
gestão, aprofundou a integração com outros programas. Objeto de centenas de milhares
de estudos no Brasil e no exterior, o Bolsa Família foi fiscalizado sob
diferentes ângulos e por especialistas de variadas áreas. Pulverizou, com
resultados consistentes, todos os preconceitos que, sob o manto de
questionamentos à sua eficácia, foram lançados contra seus beneficiários.
O benefício não estimulou a
natalidade nem o abandono do trabalho, mas ajudou a reduzir a mortalidade
infantil e o déficit de estatura das crianças e a realizar o controle e a
detecção precoce de tuberculose e hanseníase. Criou condições para que crianças
de famílias pobres pudessem continuar na escola, garantiu acesso a políticas
públicas, assegurando direitos e gerando oportunidades para milhões de pessoas.
Como mostrou neste mês o jornal que acha que o PT é o diabo, sete em cada dez
famílias pioneiras do Bolsa puderam prescindir do benefício.
Ao contrário, o Auxílio
Brasil destrói as bases que tornaram o Bolsa Família peça central desse
processo de redução da pobreza e de inclusão social sem precedentes na história
de nosso país. O inconsistente programa proposto por Bolsonaro prescinde da
pactuação e execução em parceria com estados e municípios, centralizando as
decisões no governo federal, ente distante do diferenciado cotidiano da
população.
Troca o Cadastro Único,
instrumento fundamental para o Estado conhecer as carências das pessoas
inscritas e integrar programas para atendê-las, por um aplicativo impessoal, cujo
uso pode representar uma barreira intransponível para parte dos beneficiários.
Desqualifica o processo humanizado de abordagem e acolhimento garantido no
Sistema Único de Assistência Social. Propõe nove diferentes tipos de
benefícios, pulverizando a ação integrada que caracterizou o Bolsa e tornando
complexa e mais onerosa a implementação do programa.
Além dessas mudanças
disruptivas na operacionalização do programa, o Auxílio Brasil contrapõe-se ao
Bolsa Família também em relação aos benefícios. Os nove benefícios distintos
segmentam fortemente o público beneficiário e fragilizam um dos eixos centrais
do Bolsa, que era a integração de benefícios, para ampliar impacto e
simplificar a implementação. Mais importante ainda, os novos benefícios
propostos no Auxílio Brasil estão ancorados em uma visão preconceituosa e
retrógrada sobre cidadãos que precisam de proteção social.
São “prêmios” para aqueles
que se esforçam para conseguir emprego, para ter bom desempenho escolar ou nos
esportes, justificados, implicitamente, por uma visão da pobreza como resultado
de dificuldades individuais. Enquanto o Bolsa Família estava ancorado em um
conjunto de direitos e proteção social ampla, cuja garantia era
responsabilidade do Estado, o Auxílio Brasil baseia-se em uma visão de
desempenho individual, que, se bem-sucedido, deve ser premiado pelo Estado.
Voltamos à visão dos pobres
como aqueles que não deram certo por falta de esforço, da meritocracia
invertida que, por séculos, reinou no Brasil, desconsiderando os fatores
estruturais e coletivos que estão na base das imensas desigualdades e da
exclusão de nossa sociedade. Essa visão preconceituosa e equivocada da pobreza
e dos pobres produziu um programa que reduz o enfrentamento da miséria a uma
mera questão de transferência de renda e de prêmios ao esforço individual.
Cabe insistir: o Auxílio
Brasil não é um novo Bolsa Família. O Auxílio Brasil é mais um passo do governo
Bolsonaro no desmonte do sistema de proteção social brasileiro. Ele é da mesma
estirpe da reforma trabalhista, da reforma previdenciária, da extinção da
política de valorização do salário mínimo, da redução de recursos para a saúde
e a educação. Não é apenas uma mudança de nome; é a desconstrução do conceito
de responsabilidade coletiva pelo enfrentamento da pobreza.
Se tivesse compromisso com o
enfrentamento da pobreza, Bolsonaro teria tomado uma atitude há meses, e
poderia ter atuado de forma simples e rápida. Bastava elevar a linha de pobreza
e reajustar os benefícios do Bolsa Família, o que poderia ter feito com um mero
decreto, instrumento legal de iniciativa exclusiva do presidente. Mas nunca foi
isto.
O debate em torno da questão
dos recursos para pagamento do Auxílio Brasil é conveniente para Bolsonaro.
Evita esclarecer que o Auxílio Brasil vai excluir 22 milhões dos 39 milhões de
beneficiários que atualmente recebem o Auxílio Emergencial, que ficarão à
míngua. Evita mostrar que os novos benefícios do Auxílio Brasil são “pastéis de
vento”, pois não serão implementados em 2021 ou em 2022, por incompetência
operacional e por limitações legais.
Também evita explicitar que,
por não ter projeto para o País exceto a sua permanência no poder, o
(des)governo Bolsonaro extinguiu um programa que funciona muito bem há 18 anos,
para lançar os pobres em um ambiente de maior incerteza, que só amplia o caos
social que reina no reina no Brasil. Retrocesso, irresponsabilidade,
descompromisso – nada novo, apenas Bolsonaro sendo Bolsonaro.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/politica
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