“Podemos certamente dizer
que a nossa proficiência tecnológica excede de longe o nosso desenvolvimento
moral, social e político” (Oliver Stone e Peter Kuznick).
Pequena
história da exploração
A revolução digital está
tendo impactos tão profundos quanto em outra era teve a revolução industrial. O
que chamamos de capitalismo tem as suas raízes na industrialização, que
envolveu transformações tecnológicas, mas também de relações sociais de produção,
com o trabalho assalariado e o lucro do capitalista, além de um marco jurídico
centrado na propriedade privada dos meios de produção. Com a revolução digital,
que envolve uma expansão radical das tecnologias, bem como a generalização da
economia imaterial, a conectividade global, o dinheiro virtual e o trabalho
precário, a própria base da sociedade capitalista se desloca.
Em particular, a apropriação
do produto social por minorias ricas, mas improdutivas, já não exige geração de
emprego e produção de bens e serviços. Passa pela intermediação do dinheiro, do
conhecimento, das comunicações e das informações privadas. Onde dominava a
fábrica hoje temos o domínio das plataformas em escala planetária, que exploram
não só as pessoas, por exemplo, através do endividamento, mas também as
próprias empresas produtivas através dos dividendos pagos a acionistas
ausentes.
O presente estudo está
centrado precisamente no que está mudando no que chamamos de modo de produção
capitalista. A atividade industrial permanece, sem dúvida, como permaneceu a
atividade agrícola diante da revolução industrial, mas o eixo de dominação e
controle já não está nas mãos dos capitães da indústria, está na mão dos
gigantes financeiros como BlackRock, de plataformas de comunicação como Alphabet,
de ferramentas de manipulação como Facebook, de intermediários comerciais como
Amazon.
O mecanismo de apropriação
do excedente social mudou, e com isso mudou a própria natureza do sistema.
Estamos no meio de uma transformação profunda da sociedade, nas suas dimensões
econômicas, sociais, políticas e culturais, gerando o que tem sido chamado de
crise civilizatória. Estamos transitando para outro modo de produção, e o
presente estudo sistematiza os novos mecanismos.
A
eterna exploração
Em diversas eras e
sociedades, a apropriação do produto social por minorias sempre esteve no
centro da organização da sociedade como um todo. O ponto de partida é a própria
existência do excedente social. Quando a produtividade de uma sociedade se
eleva, permitindo que se produza mais do que o básico necessário para as
famílias, aparecem elites que reivindicam, por alguma razão, e com
justificativas mais ou menos duvidosas, o direito a ter mais do que os outros,
apropriando-se do produto de terceiros. No modo de produção escravagista,
apropriavam-se do que produzem os escravos, uma apropriação baseada na força, e
explicada como legítima propriedade de pessoas.
Quando Lincoln consegue que
se aprove, no século XIX, o fim da escravidão, não se indenizou os escravos, e
sim os donos de escravos, por perderem “propriedade”. Sempre houve explicações, que hoje chamamos de narrativas, para
justificar o absurdo: eram pretos, ou selvagens, ou não teriam alma, como se
dizia na época, ou ainda foram capturados em “guerra justa”, como também se
dizia. O essencial era que produzissem um excedente, que permitia o luxo
dos proprietários e o financiamento da repressão aos numerosos levantes. Era o
modo de produção escravagista, injusto, mas estável, durou muitos séculos,
inclusive com leis que regiam o sistema da propriedade de seres humanos e
religiões que as sacramentavam. A razão do mais forte sempre busca parecer
justa.
No sistema feudal, elites se
apropriaram da terra, base de qualquer economia antes que surgissem as
máquinas. Os senhores feudais, por razões diversas, mas essencialmente por
disporem de armas e fortificações, em luta uns com os outros terminavam por
delimitar os feudos, sendo que a população rural que vivia nas terras não seria
propriedade do aristocrata, mas seria sim regida por sistemas complexos de
obrigações que proibiam que deixassem o feudo. Os homens eram servos, serviam.
O excedente produzido era apropriado, na idade média e em grande parte da
renascença – na Rússia até 1917 – pelos “senhores”. Os trabalhadores da terra
eram obrigados a ceder aos aristocratas grande parte da sua produção, riqueza
que permitia que o nobre tivesse um castelo, vivesse com luxo, e pudesse pagar
a tropa que assegurava que o sistema se mantivesse. Aqui também houve inúmeras
revoltas e repressões.
Parte do excedente servia
também para sustentar os conventos, numa religião que, a partir do século IV,
se aliara aos poderosos, e justificava o sistema como vontade divina. As leis
asseguravam a coerência do sistema, as regras do jogo por assim dizer,
inclusive, por exemplo, na Europa, o jus primae noctis, que dava ao aristocrata
o direito de se apropriar da primeira noite de casamento de uma camponesa. Os
poderosos gostam da legalidade, conquanto sejam eles a fazer as leis. E para os
que a contestavam havia também a inquisição e outros sistemas repressivos.
De toda forma, era um modo
de produção, também durou séculos, definido por uma base econômica, a terra,
relações sociais de produção, a servidão, e formas de extração do excedente sob
forma de imposições de diversos tipos. O conjunto era regido por regras, em boa
parte respeitadas. A apropriação do excedente era baseada nas leis,
justificadas pelo sangue azul dos nobres, sancionada pela igreja com
narrativas, e garantida pela repressão militar. Os bailes de Versalhes ou de
Viena tinham de ser financiados por alguém. Witold Kula, um historiador
polonês, escreveu para o sistema feudal o que Marx escreveu para o sistema
capitalista. Era um sistema, um modo de produção.
Ainda que os dois sistemas
que mencionamos acima, o escravagista e o feudal, nos pareçam hoje
historicamente distantes, precisamos lembrar que a escravidão no Brasil existiu
até o fim do século XIX, nos Estados Unidos até a Guerra de Secessão, que a
exploração das populações colonizadas era geral e durou até meados do século
passado, e que o sistema de apartheid durou até ontem na África do Sul e
perdura ainda na Palestina. Nem os Estados Unidos nem o Brasil lograram ainda
absorver e ultrapassar a opressão e as desigualdades herdadas do passado
escravagista, a África enfrenta penosamente a reconstrução necessária. O
passado não é assim tão distante. É um rabo longo que demora a passar. Em
muitas nações erigidas em países, ainda é estruturalmente decisivo.
O modo de produção capitalista
nos aparece com outro nível de legitimidade. Na base da transformação esteve o
avanço científico, a revolução energética, o aumento da produtividade e,
portanto, a possibilidade de gerar um ciclo sustentado de enriquecimento
social. O Liberté, Egalité, Fraternité da revolução francesa ecoou pelo mundo.
Com o Iluminismo, a busca dos valores na sociedade passara a abrir frestas no
obscurantismo, reduzira-se o número de mulheres queimadas como bruxas (“não
permitirás que as bruxas vivam” instrui a Bíblia, Exodus 22:18), geraram-se a
visão de enriquecimento como fruto legítimo do esforço, e o conceito do mérito
como virtude. A narrativa evoluiu. O trabalhador passou a ter a liberdade de
pedir emprego e de ser explorado. A revolução industrial trouxe outro nível de
produtividade, aumentou a prosperidade, mas não para todos. Um avanço, sem
dúvida, e o mecanismo de exploração evolui, mas se mantém, as narrativas mudam,
e a repressão se moderniza. Em particular, a exploração e violência mais direta
se deslocam para o Sul.
No estudo “A Formação do
Terceiro Mundo”, apresentamos a dimensão global que o capitalismo adquire, em
que a industrialização da Inglaterra, sistema bem capitalista, se apoiou na
reprodução da escravidão nos Estados Unidos e outros países que lhe forneciam
matéria prima. O capitalismo do império britânico não teve reticências em usar
de escravidão, trabalho forçado e massacres em diversas partes do mundo, e hoje
assistimos impressionados à Inglaterra se desculpando pelo que fez na Índia, no
Quênia e tantos outros países, à França pedindo desculpas a países africanos
pelas violências do passado, os Estados Unidos pelo que fizeram no Irã. Daqui a
alguns anos irão se desculpar pelo que fizeram no Afeganistão. Lembremos que a
Bélgica, no Congo, foi responsável por milhões de mortes, processo documentado
no estudo “O Fantasma do Rei Leopoldo”. A prosperidade dos países hoje ricos
não se deve apenas à produtividade e racionalidade do sistema capitalista. A
fraternité tem claros limites. Muitos até hoje não se dão conta dos subsistemas
primitivos em que se apoiou o chamado liberalismo capitalista. O Brasil
contribuiu muito.
Em termos gerais, o sistema
capitalista dos países ricos se baseou em articulações com sistemas
pré-capitalistas nos países colonizados ou simplesmente dependentes. Samir
Amin, em livro clássico, chamou corretamente este sistema de ‘acumulação do
capital em escala mundial’. Essa dimensão da acumulação permitiu uma
apropriação do excedente, por meio da exploração dos trabalhadores e
apropriação da mais valia nos países centrais, mas também por meio da
exploração colonial direta ou a troca desigual, com a narrativa de trazer a
civilização aos povos primitivos, e evidentemente com a força militar.
A religião, aqui também,
frequentemente serviu de bálsamo civilizatório. Isso foi ontem, meus anos de
universidade eram contemporâneos com as lutas de libertação nas colônias. Hoje
temos países independentes, que podem decidir livremente por quem serão
explorados, se por sistemas de endividamento ou de troca desigual, ou ambos. A
exploração muda de forma, às narrativas atualizam o discurso, o controle
militar se torna mais sofisticado. Mas estamos sempre servindo elites.
O
equilíbrio precário: produzir para quem?
Essa pequena retrospectiva
nos ajuda a lembrar a que ponto a barbárie que hoje nos chocaria – a
escravidão, a servidão, o colonialismo, o apartheid – ainda é próxima, e a que
ponto sobrevive e penetra no nosso cotidiano. Basta olhar a cor das pessoas nas
nossas favelas ou nos bairros das periferias urbanas e nas prisões nos Estados
Unidos. Também devemos atentar para o impacto que têm as diversas formas de organização
dos países em desenvolvimento, não só porque seguem em grande parte
especializados em produtos primários, o que trava a modernização, mas porque
quem exporta precisa da mão de obra apenas para o trabalho, não para o consumo:
o produto vai para o mercado externo, e o consumo das elites é em boa parte
garantido por produtos importados. Para quem produz para o mercado externo, e
importa os produtos acabados, não é indispensável o poder de consumo dos seus
trabalhadores. Em pleno século XXI no Brasil, a reprimarização gera o mesmo
desprezo pela elevação capacidade de consumo da população.
A miséria impressionante dos
trabalhadores, coisa que vemos até hoje no que chamamos de países em
desenvolvimento, mesmo com tecnologias as mais avançadas, resulta dessa forma
de acumulação de capital, em que dinamizar a capacidade de compra da base da
sociedade não é essencial, pois o ciclo de acumulação se fecha em boa parte no
exterior. Ao mesmo tempo, o avanço tecnológico torna a necessidade de contratar
mão de obra menos essencial, pelo processo de substituição. Assim que há
modernização tecnológica, mas com pouca transformação das relações sociais,
perpetuando a desigualdade e a pobreza. É a herança social da relação
Norte-Sul.
O leitor interessado nesse
mecanismo poderá consultar o meu “Formação do Capitalismo no Brasil”. A ideia
essencial, que tive oportunidade de discutir tanto com Samir Amin como com Caio
Prado Júnior, é que o ciclo de reprodução do capital dos países pobres se fecha
no exterior, a necessidade de mão de obra se reduz, e a troca desigual e o
endividamento asseguram o resto. A modernidade tecnológica convive sem
problemas com exploração em grande medida pré-histórica.
Nos próprios países
industrializados, no chamado Ocidente que representa cerca de 15% da população
mundial, a tensão entre aumentar a exploração e assegurar a capacidade de
compra da população se colocou com força. Foi preciso o mundo capitalista
dominante enfrentar a crise de 1929 para que se tomasse consciência de que não
basta produzir, é preciso assegurar o consumo, para fechar o ciclo de
acumulação de capital. As exportações para os países mais pobres, em troca de
matérias primas, não seriam suficientes, e o New Deal de Roosevelt tem na sua
essência a geração, por meio do Estado, de maior capacidade de compra por parte
da população em geral. Sherwood, que escrevia os discursos do Roosevelt,
detalhou o programa em brilhante livro, Roosevelt and Hopkins. Hopkins era o
importante na execução do New Deal.
A Guerra de Secessão, nos anos
1860, além da libertação dos escravos, tinha rompido o ciclo colonial do
algodão trocado por importações britânicas, interiorizando o ciclo de
reprodução de capital, nas novas relações entre o nordeste industrial e o sul
produtor de matéria prima. Mas foi o New Deal que gerou uma incorporação ampla
da população americana na prosperidade. O consumo na base da sociedade,
financiado inicialmente pelo Estado, gerou demanda, logo redução dos estoques
acumulados nas empresas, e em seguida a retomada da produção, logo aumento do
emprego, gerando ainda mais demanda, permitindo um ciclo de acumulação do
capital desta vez de forma equilibrada. Eric Hobsbawm, no livro “A era dos
extremos”, detalha essa transformação econômica e cultural.
Entre os aportes de Keynes que
demonstrou a necessidade de se assegurar a demanda agregada, o impacto do
sucesso do New Deal, e o bom senso de um Henry Ford afirmando que bons salários
eram necessários para que os seus carros fossem comprados, abriu-se uma nova
visão, a do Welfare State, Estado de Bem-Estar. Não se podia mais dizer que os
trabalhadores não teriam a ganhar com o capitalismo. Por uma vez, e em
particular durante os 30 anos “gloriosos” do pós-guerra, tivemos uma dinâmica
impressionante nos países ricos, com o equilíbrio da capacidade de produção e
da demanda social, da dinâmica empresarial e do investimento público. Em termos
políticos, gerou-se a socialdemocracia.
Lembremos, uma vez mais, que
para uma economia exportadora de bens primários que importa bens industrializados,
o mercado está no exterior, e as tecnologias substituem empregos, assim que
expandir os empregos e aumentar os salários dos trabalhadores não seriam
prioridades. Angola exporta petróleo e importa bens de consumo para as elites.
Na América Latina, quando se tenta democratizar a economia, voltam ditaduras.
Podemos ter democracia,
conquanto não a usemos: o resultado é
democracia política formal, o voto, sem a democracia econômica. A pandemia
apenas veio escancarar a fratura econômica, política e social. No Brasil, hoje um dos maiores exportadores
de produtos agrícolas do mundo, temos 19 de milhões de pessoas que passam fome,
e 116 milhões em situação de insegurança alimentar, em pleno 2022. Com um
andar acima em termos de tecnologia e de volumes de extração, chegamos a um
novo tipo de tecnocolonialismo. Com algumas exceções como evidentemente a
China, e também alguns tigres asiáticos, a fratura planetária do capitalismo se
tecnifica, mas se aprofunda.
Por:
Ladislau
Dowbor, professor e economista.
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