Na leitura da economia, escreve
um conto das duas cidades: uma que vê do alto o saldo da crise; e outra que
assiste às consequências de baixo. A teoria de que o vírus aumentou a
desigualdade social foi testada em cidades do mundo todo.
No Brasil, onde o mal é
endêmico, foi pior, levada ao extremo
“Nas nossas regiões
metropolitanas, já vinha numa tendência de crescimento desde 2015, com a crise.
E o que a pandemia fez foi jogar essa desigualdade para outro nível. As pessoas
estão perdendo renda do trabalho e, ao mesmo tempo, essa renda está se
tornando, está ficando menos, está distribuindo de uma forma menos igualitária.
Então, você tem uma piora da renda do trabalho e um aumento da desigualdade da
renda do trabalho. O pior cenário que você pode ter”, explicou André Salata,
sociólogo e professor da Escola de Humanidades da PUC-RS.
Em São Paulo, as diferenças
têm endereço. Cada ponto de vista, uma história. O valor do metro quadrado das
áreas nobres subiu como efeito colateral da quarentena, enquanto nas vielas
estreitas as famílias vulneráveis ficaram sem saída.
Posicionada no nicho da elite
de compradores, a imobiliária Boutique nunca cresceu tanto como em 2020. Já há
fila de compradores esperando por uma cobertura.
“A gente teve um crescimento
de 42% e a gente não esperava isso. A gente brinca que falta produto e não
falta cliente para esse nicho”, revelou Rafael Guaraná Menezes, sócio da
imobiliária de luxo.
As maquetes econômicas
projetam para além dessa crise o abismo entre classes
Para os economistas, uma
"recuperação em K". A grafia da letra desenha a queda na atividade
com a pandemia, depois indica o caminho da saída. Não é bom: ricos cada vez
mais ricos, pobres descendo ainda mais na arquitetura social. E esse vírus da
desigualdade deixa marcas para o futuro, tal como a pandemia.
“A pandemia não é só um
problema que acontece enquanto ela dura; ela deixa marcas na educação, no
trabalho dos jovens de hoje. Esse efeito cicatriz que a geração de estudantes e
de jovens durante a pandemia devem sofrer depois da pandemia”, alertou Marcelo
Neri, diretor da FGV Social.
Do alto, o impacto financeiro
da pandemia foi sentido à distância. Pessoas acomodadas no topo da pirâmide
perderam pouco ou nada, e houve até quem ganhou no período de distanciamento
social. É o que indicam os dados recentes de emprego e renda. A Pesquisa Nacional
de Amostra por Domicílio mostrou que, na média, os 10% mais ricos perderam 3%
da renda com a pandemia, e os 40% mais pobres perderam 30% da renda,
descontando o auxílio do governo.
É na base da pirâmide social
que a estagnação econômica como sintoma do vírus faz mais vítimas. Nesse
estrato social que vive do emprego informal, difícil é encontrar alguém que não
tenha sido afetado.
O auxílio emergencial do
governo amorteceu o impacto e fez até subir a renda dos mais pobres e reduzir a
desigualdade nos meses da pandemia. Mas quando os pesquisadores tiraram o
auxílio emergencial da conta, o resultado foi uma queda drástica dos mais
pobres, enquanto os mais ricos praticamente não têm mudanças.
“O que é muito preocupante
nesse momento, em que o auxílio emergencial teve fim no ano passado, mas
infelizmente os sinais que a gente tem visto no mercado de trabalho não são de
uma recuperação tão forte e rápida assim”, lamentou André Salata.
Mayara só conta agora com
doações. Ela é mãe solteira e agora se ocupa da filha em tempo integral. Perdeu
as duas fontes de renda.
“Por causa dessa pandemia,
desse vírus, ninguém quer encostar numa água. Todo mundo tem pânico de ter
algum contato físico. E o trabalho de diarista? Sumiu! Eu não quero viver de
doação, eu sou jovem, saudável, eu quero um emprego! Quero ter uma renda no
final do mês para a minha geladeira vai ter algum alimento, vai ter um leite
para a minha filha”, desejou Maiara Santana, vendedora ambulante.
“Ambulantes, diaristas,
lojistas, feirantes, foram pessoas que foram severamente impactadas com as leis
de restrição de circulação de pessoas e, apesar do auxílio emergencial ter
amortecido um pouco o impacto econômico desse vírus, a gente vê que, nesse
momento em que o auxílio emergencial já acabou, as consequências da crise
econômica que a gente viveu estão ressurgindo; e o reflexo direto disso é a
desigualdade, porque milhões de pessoas estão desempregadas e aquelas que
trabalhavam por conta própria tiveram um impacto muito grande nos seus
rendimentos”, explicou Gabriela Chaves, economista da NuFront.
“Então eu diria que, mais do
que uma sociedade desigual, teremos uma sociedade desigual mais estagnada, ou
seja, o bem-estar é afetado de várias formas”, disse André Salata.
Do alto da sua experiência de
quem já passou por graves crises econômicas, Pérsio Arida, um dos economistas
idealizadores do Plano Real, indica um caminho.
“O grande desafio do Brasil
hoje é crescer e enfrentar o problema da desigualdade, e para isso a iniciativa
começa no executivo federal - ele que dá o tom, ele que dá a norma, e, nesse
sentido, nós estamos perdendo tempo sim. Precisa voltar à normalidade com
vacina, abrir economia, fazer uma reforma tributária, colocar o governo para
funcionar direito. O estado tem que deixar de fazer o que faz mal e fazer o que
de fato lhe compete, que é educação pública de qualidade, saúde de qualidade e
inovação tecnológica e apoio à ciência, é isso que o estado deveria estar
fazendo”, defendeu o economista.
Fonte: Jornal
Nacional
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