Na
semana passada participei de um debate na Universidade Livre de Berlim que,
partindo de questões literárias, terminou por entrar por reflexões sobre a
atual situação brasileira. Houve depoimentos candentes sobre o clima de
perseguição e violência contra a dissidência ao candidato vitorioso, Jair
Bolsonaro (PSL), e sua trupe que se implantou durante a eleição e que tende a
se intensificar depois da posse.
Relatos
variaram da desarticulação dos programas sociais desenvolvidos durante os
governos de Lula e Dilma (como o de apoio às cisternas no Nordeste),
imediatamente posta em prática pelo governo Temer, passando pelos conflitos
familiares e perseguição desde já a professores, estudantes, até de estupros de
mulheres simplesmente porque apoiaram o outro candidato.
No
debate e depois dele me veio então a ideia de escrever um manual de
sobrevivência na "selva bolsonara".
Expectativas
Em meio
a tantas idas e vindas, voltas e contravoltas da "transição", uma
coisa é clara: o governo de Bolsonaro será uma grande mascarada. A campanha já
foi. O governo vai estender, ampliar e aprofundar o estilo.
Em
primeiro lugar trata-se de mascarar o passado; em seguida, o futuro. Para tanto
vai ser necessário mascarar indefinidamente o presente.
Mascarar
o passado
A
ambição do projeto em torno do qual Bolsonaro e sua "equipe" gravitam
é mistificar o passado, impondo a ideia de que a ditadura de 1964 a 1985 foi um
período idílico entre governo e povo, baseado na ideia de prosperidade com
segurança. Vão varrer para debaixo do tapete todas as crises e percalços do
regime, não apenas no sentido de edulcorar a repressão.
As
crises econômicas de 66/67, o brutal endividamento externo, a falência em ler o
que viria a ser a crise do petróleo a partir da guerra de 1973 no Oriente
Médio, a transformação do sonho da casa própria no pesadelo da prestação e da
inadimplência, o afogamento do ensino público e outras mazelas serão
simplesmente negadas.
Em
consequência deste delírio seria necessário mascarar tudo aquilo que foi conquista
da Constituição de 88, e o período de conquistas sociais vivido durante os
governos de Lula e o primeiro de Dilma. Sem falar na presença soberana da
política externa brasileira.
Tudo
isso vai ser jogado para debaixo do tapete da "maior corrupção que atingiu
o país", e também da cobertura fornecida pela falácia anacrônica da
"ameaça comunista", que é um dos poucos fios comuns que unem o coral
desencontrado que é a "equipe" do futuro governo, onde, curiosamente,
o general Mourão vem despontando como uma "voz ajuizada".
Mascarar
o futuro
Dois
dos "sonhos" (na verdade, pesadelos) preferidos da
"equipe", cujo "coach" é o delirante Olavo Carvalho, são:
a) realinhar a política externa do Itamaraty e do país como um todo, em torno
da visão de Trump e dos Estados Unidos como os messias que salvarão o Ocidente
da débâcle diante do "comunismo" e dos perigos "muçulmano"
e outros; e b) enquadrar a juventude através de uma doutrinação ideológica e
partidária no ensino, da creche à pós-graduação, que a vacine contra a
possibilidade do temido "retorno das esquerdas" e seus "temas
conexos", ou seja, temas "comunistas" e "deletérios",
como igualdade de gênero, combate à homofobia e outros preconceitos etc.
Além
disso, será necessário mascarar todas as crises futuras como "futuras
aberturas para um melhor destino". O eventual "desemprego"
passaria a se chamar de "liberdade"; a fome, a falência da saúde
pública, serão rebatizadas como "correção dos rumos estatizantes" e
por aí irá. A doutrinação ideológica unidimensional será rebatizada como
"liberdade de expressão e pensamento" contra a ideologia
"estatizante", "comunista" e "destruidora da
família". E assim por diante.
Ergo,
mascarar continuamente o presente
Os
primeiros momentos do governo Bolsonaro prometem ser uma montanha russa de
sobe-e-desce, trepida-trepida, balança mas não cai, ou cai e aqui e ali, em
quase todas as frentes. Por exemplo, e dos menores, da busca de uma tecnologia
de ponta passaremos a uma tecnologia pontuda, com possível propaganda de
travesseiros, com o ministro-astronauta.
Haverá
trombadas com o Congresso, prováveis turbulências internas e externas com a
nova política externa "de cabeça erguida", conforme o futuro
chanceler, mas ao mesmo tempo com ela enfiada na areia do anacronismo
anticomunista, na obtusidade dos aspectos mais retrógrados do trumpismo, e
assim por diante.
Na
economia, viraremos porquinhos de laboratório das experiências mais radicais de
neoliberalismo desde Pinochet. Vão privatizar até a cadeira do presidente.
Tudo
isto só vai se manter de pé, ou de quatro, através de uma brutal repressão em
todos os sentidos. Vai começar pela criminalização dos movimentos sociais, tipo
MST, MTST. Vão tentar, com ajuda da tigrada da toga, aleijar ou extirpar
definitivamente o PT da cena política.
Nas
universidades, nas escolas, na saúde pública, haverá perseguições implacáveis.
Com aluda da alcateia de oportunistas, haverá a instituição da delação premiada
contra terceiros. Como houve na ditadura: nas universidades grupos de docentes
denunciavam outros grupos de "inimigos" para ocupar cargos de
direção, favores internos, fluxo financeiro, etc.
Todo
fracasso será revestido com a capa do sucesso. As redes sociais regurgitarão e
vomitarão sucessos. O que não for sucesso "ainda" será creditado à herança
maldita dos governos no PT. Haverá ajuda nisso, pelo menos na parte econômica,
por parte da mídia mainstream tradicional, que será domesticada. Vão aprovar,
como vaquinhas de presépio, a criminalização dos movimentos sociais, a
perseguição ao PT, a repressão aos dissidentes.
Haverá
vagidos débeis contra os aspectos mais abstrusos da política governamental, por
exemplo, na Folha de S.Paulo. Vamos ver até onde aguentam.
Ainda
não sei como tentarão controlar a internet e dobrar a mídia alternativa e seus
jornalistas, mas isso virá.
Esqueçam
políticas de proteção ao meio ambiente. As ONGs e partidos de extrema-esquerda,
que ajudaram a criticar acerbamente os governos petistas, terão lágrimas de
sobra para chorar o leite derramado e as florestas esturricadas. Mas isso vai
ser mascarado como "ordem e progresso". Enfim, nosso inferno vai
ganhar muitos matizes.
Entre
eles o das novas disputas sucessórias que já estão começando.
Pós-Bolsonaro
Há,
visivelmente, desde já, três projetos em marcha. O mais vistoso é o de Moro,
amealhando o aparato judicial e policial disponível. Faz parte deste projeto
manter Lula na cadeia, como cereja do bolo, e destruir a "máquina de
corrupção do PT", a "maior da história do Brasil".
Vai
haver o industriamento em escala industrial da pressão sobre o aparato
político, em particular o Congresso. Ponto forte: terá o apoio da tigrada da
toga. A ver se empalma o "acaudilhamento" da PF e arredores. Ponto
fraco: Moro agora é vitrine, e está perdendo prestígio na seara internacional
rapidamente.
Há o
projeto Bolsonaro. Dizer que não pretende a reeleição é algo que tem nariz
comprido e pernas muito curtas. Ainda mais com a prole que tem, tão ávida
quanto descalibrada.
Ponto
forte: está na Presidência. Ponto fraco: ele mesmo, inseguro, instável,
despreparado, sujeito a chuvas internas e trovoadas externas que o deixam tão
assustado como quando deveria ir a um debate na Globo e nunca foi.
Correndo
por fora, há o "ajuizado" Mourão. Pode ganhar a simpatia da caserna,
é seu ponto forte. Pode ser visto como o porta-voz da caserna, é seu ponto
fraco. O meio financeiro e empresarial pode não gostar. Idem, o meio financeiro
internacional e estadunidense, que desde a Guerra das Malvinas olha o meio
militar latino-americano com desconfiança e desde o fracassado golpe contra
Hugo Chávez em 2002 com desdém.
Haveria
outras candidaturas, por ora, previsíveis com novos nomes do velho sistema, mas
ironicamente buscando colar-se no rótulo de "nova política",
"antissistema", e num previsível fracasso econômico. Doria, Amoêdo,
Witzel, Zema são nomes que passaram a "existir".
Autodefesa
Não
esperemos qualquer ajuda por parte de instituições jurídicas, a não ser
patetices apatetadas oriundas de seus escalões superiores.
Haverá
ajuda internacional sim, mas de efeito limitado.
Temos
de contar com o fato de que se houve, e houve, manipulação da informação e de
consciências por parte das equipes virtuais da campanha de Bolsonaro, com
certeza uma grande parte dos que nele votaram ouviram, nestas mentiras que lhes
foram servidas via Facebook, WhatsApp etc., exatamente aquilo que queriam ouvir
para justificar seu voto pelo embrutecimento político, para justificar aquilo
que seu ressentimento, medo da ascensão dos "outros", das
"outras" e de tudo mais, sua sensação de desamparo, exigiam que
fizessem.
Quando
um erro ético dessa monta é cometido, a primeira tendência é afincar-se a ele.
Depois, esquecer o que foi feito. Quando a onda Bolsonaro passar, e ela vai
passar, vamos ouvir, de milhões de corações pulsantes: "Votei em
Bolsonaro? Eu não!! Como você pode imaginar isso de mim, que sempre defendi a
democracia?" etc.
Portanto,
preparemo-nos. As amizades perdidas não se recomporão. Ou pelo menos muitas
delas. As vozes familiares não se reconciliarão, pelo menos durante muito
tempo.
Como
dizia alguém, "hay que endurecerse, pero sin perder la ternura
jamás".
A
primeira coisa a fazer é manter o equilíbrio interno, e não ceder à tentação de
imitar o comportamento dos bolsonaros. Vi horrorizado o vídeo da professora em
Brasília gritando palavrões e impropérios enquanto o "eleito" passava
em direção ao centro do processo de transição. Entendo a raiva e o desabafo.
Mas não é por aí. Vejo também com preocupação a atitude de amigos e
correligionários que propagam mensagens e informações sem checar sua
procedência e veracidade. Temos de manter o princípio da credibilidade. Da
seriedade. Do respeito a si mesmos e a outrem.
Segundo,
é preciso organizar-se. Evitar ações individuais e voluntariosas. Valorizar a
informação compartilhada. Valorizar a mídia alternativa. Evitar a militância
depressiva. Alertar sobre perseguições, descalabros, violências, sim, mas
também, e principalmente, sobre resistência, alegria, humor, reação ao
fascismo. Valorizar as formas coletivas de resistência, de organização, mídias,
sindicatos, associações de todos os tipos, organizar comitês de defesa da
democracia em todos os quadrantes.
Estudar
história. A pior sensação que as ditaduras transmitem é de que serão eternas.
Não, elas passam. A de 64 passou. Agora tem gente querendo traze-la de volta. É
uma minoria. São ditadores de pijama. Há muito outros, milhões, que embarcaram,
mistificados, nesta canoa. Vai ser duro, mas poderão ser ganhos para a causa
democrática. Assim como os e as abstencionistas. Os pequenos e as pequenas
Pilatos e Pilatas. Poderão crescer.
Isto
aqui já vai enorme. Voltaremos ao assunto. Por ora, pensemos como Mário
Quintana:
Esses,
que hoje
Atravancam
meu caminho,
Eles
passarão.
Eu
passarinho
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