O ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva (Lula) foi recebido como estadista na Argentina. Em entrevista exclusiva
ao site Página 12, falou sobre a situação política no Brasil e os desafios
econômicos latino-americanos e globais. “O Brasil vive uma situação que achava
que nunca mais viveria, com 19 milhões de pessoas passando fome... Os
conservadores destruíram tudo o que construímos... Bolsonaro é um fascista e o
Moro é um neofascista, os dois vão tentar mentir para a sociedade o tempo todo...”, disse.
Confira,
abaixo, alguns dos principais pontos:
Página
12 – Na Argentina, o macrismo deixou enormes prejuízos sociais com sua política
econômica, no Brasil o mesmo acontece com a política neoliberal de Paulo
Guedes. Que margem terá um futuro governo no Brasil para reverter essa herança?
Lula
–
O Partido dos Trabalhadores (PT) é capaz de mudar a situação do Brasil, precisa
voltar ao governo porque sabe colocar em prática políticas de inclusão social,
geração de empregos, para que os mais pobres participem do orçamento das
cidades e estados brasileiros. Não podemos aceitar que um país do tamanho do
Brasil, que foi a sexta maior economia do mundo sob meu governo, hoje seja a
décima terceira; Não podemos aceitar que um país que acabou com a fome em 2012
e hoje veja que o flagelo é tão forte: são 19 milhões de pessoas que não têm o
que comer. Tanto o Brasil quanto a Argentina, assim como a Bolívia e o Chile,
precisam de governos progressistas que envolvam os pobres em uma participação
ativa na economia, para que possam ser consumidores e comprar coisas e ter
acesso à educação. Estou convencido de que a América Latina pode se recuperar.
Infelizmente pessoas como Néstor Kirchner e Hugo Chávez morreram, outras
pessoas foram violentadas, como Rafael Correa e Dilma Rousseff, depois da
violência da lei, contra mim; o golpe contra Fernando Lugo. Os governos
conservadores destruíram tudo o que construímos para o bem-estar social de
nossos povos. Sei o que está passando o camarada Alberto Fernández, o que
significa a dívida que Macri deixou com o FMI e sua pressão; Por isso, Alberto
precisa trabalhar muito para que haja um acordo e que o povo argentino não seja
vítima dos neoliberais.
Página
12 – O que você espera da negociação da Argentina com o FMI?
Lula
–
É possível fazer um acordo. O FMI foi tão benevolente com os países ricos com a
crise de 2008, por isso tem que ser muito generoso para lidar com a dívida da
Argentina. O povo argentino não pode ser sacrificado.
Página
12 – Como você descreve sua relação com Cristina Fernández e Alberto Fernández?
Lula
–
Minha relação com Cristina é mais antiga porque convivi com ela desde que
Néstor Kirchner foi eleito presidente da Argentina, e depois com ela como
presidente. Minha relação com Alberto teve um momento que me comoveu e foi
quando ele me visitou quando eu estava detido no presídio de Curitiba. Foi um
ato de generosidade e solidariedade de Alberto. Por isso, com muito orgulho,
vou participar do grande ato de recuperação da democracia na Argentina, são 38
anos que devem ser valorizados. A vitória de Alberto e Cristina mostra que o
povo não pode desanimar, que é possível que o povo recupere a democracia na
medida em que o povo possa participar ativamente das decisões. Tenho uma estima
especial pela Argentina porque não concebo que o Brasil cresça sozinho; O
Brasil tem que crescer, a Argentina tem que crescer, o Uruguai é o mesmo, o
Paraguai, a Bolívia porque juntos podemos ser mais fortes. Quando me tornei
presidente em 2003, o intercâmbio comercial entre Brasil e Argentina mal era de
7 bilhões de dólares; Quando deixei a presidência, eram 39 bilhões de dólares,
o que demonstra o potencial financeiro e de parceria. Para mim, a Argentina
precisa do Brasil, e isso é mútuo; como precisamos do resto da América do Sul.
Página
12 – É significativo para você que o ex-juiz Sergio Moro, candidato
independente, concorra com a base eleitoral do Bolsonaro? Você diria que são
duas faces da extrema direita?
Lula
– São
dois personagens muito comprometidos com a extrema direita e, no caso do Moro,
ele é um personagem perigoso: quando era juiz se atreveu a mentir em um
processo para me condenar e me levar para a prisão e assim me impedir de ser
eleito presidente em 2018. Ainda penso quão sério esse homem pode ser para a
sociedade brasileira? Quantas mentiras ele pode contar aos brasileiros? Então,
eu diria que são dois extremistas, o Bolsonaro é um fascista e o Moro é um
neofascista, os dois vão tentar mentir para a sociedade o tempo todo. Eles vão
ter que lutar entre si para ver quem vai para o segundo turno com o PT.
Página
12 – As pesquisas indicam que você ganharia a eleição?
Lula
–
Tudo indica que o PT tem boas chances de ganhar as eleições. Temos que agir com
seriedade porque não há tempo para as eleições e, então, não podemos
reivindicar a vitória antes do tempo. O PT tem um legado político e econômico
extraordinário e de inclusão social no Brasil, vamos tentar dar à sociedade o
que o PT fez de bom no país. Vamos trabalhar para ganhar as eleições. Dos dois
que competem comigo, o Bolsonaro, como presidente, conta com o uso da máquina
governamental, e o próprio Moro, com a ajuda de setores da mídia que fazem o
enorme sacrifício para aparecer no noticiário. Não sei se é percebido na
Argentina, mas aqui sou o mais censurado do planeta terra. Qualquer candidato
que não seja o PT, que tem 1% nas pesquisas, aparece mais na televisão do que
Lula, que tem 46 ou 47% de intenção de votar. Como eu era o que venceria no primeiro
ou segundo turno, de acordo com todas as pesquisas, as empresas de mídia
priorizam os candidatos que têm um ou dois por cento de intenção de votar. Não
me preocupo porque tenho uma relação muito verdadeira com o povo e isso vai me
permitir ganhar as eleições.
Página
12 – Aliás, que papel você acha que os sindicatos deveriam ter na mídia, como
no caso do Página 12, em um contexto em que as corporações dominam a
comunicação e o jornalismo?
Lula
–
Estou muito feliz com o papel do movimento sindical na comunicação argentina.
Aqui no Brasil criamos uma televisão pública, mas ela não recebeu o
investimento necessário e não é respeitada hoje pelo governo Bolsonaro. Temos
um canal do sindicato dos metalúrgicos e dos bancos de São Paulo. Defendo que
os meios de comunicação são efetivamente democráticos e que as universidades e
os sindicatos podem ter canais de comunicação para dialogar com a sociedade,
para informá-la, seja através do rádio, da televisão, do jornal ou da Internet.
É essencial que as pessoas entendam que a mídia desempenhou um papel importante
na região na derrubada de presidentes progressistas. A imprensa tem apoiado
golpes no Brasil, vemos como a mídia ataca a camarada Cristina Fernández na
Argentina. Sei do comportamento da imprensa contra Chávez e Correa. Eu sei como
a imprensa me tratou no Brasil. As pessoas têm que lutar pela democratização
dos meios de comunicação, o que significa garantir que todas as pessoas tenham
a mesma oportunidade de falar, o direito de responder. É uma luta muito difícil.
Página
12 – Se você ganhar as eleições, você acha que Bolsonaro pode não reconhecer
seu estilo Trump diante da vitória de Biden?
Lula
–
Não, não creio. O que vai acontecer no Brasil é um golpe democrático: a grande
maioria do povo brasileiro vai rejeitar o Bolsonaro e eleger um candidato
progressista. Espero ser eu. O povo brasileiro lembra nosso legado. Estou convencido
de que vamos vencer.
Página
12 – No México, Andrés Manuel López Obrador governa, na Argentina, Alberto
Fernández, na Bolívia, Luis Arce; Gabriel Boric pode vencer no Chile. Você
considera esta a segunda onda de governos progressistas na região?
Lula
– Espero
que sim, porque o melhor momento econômico, político e social da América Latina
foi justamente quando Chile, Argentina, Brasil, Bolívia, Uruguai e Paraguai
foram governados por políticos progressistas, presidentes preocupados com a
situação do povo. Foi um momento forte de inclusão social. Por isso, incentivo
os setores progressistas a se fortalecerem para governar nossas queridas
América do Sul e América Latina. Acredito que os setores progressistas podem
vencer no Chile, que temos muitas possibilidades no Brasil, que a vitória de
Luis Arce foi uma vitória extraordinária da Bolívia, do Peru sob Castillo. As
pessoas estão descobrindo que, mesmo com muitas dificuldades, setores
progressistas governam com maior compromisso com os trabalhadores e os pobres.
Acredito que a América Latina precisa de uma oportunidade para acabar com a
pobreza. Somos ricos, temos matéria-prima, profissionais qualificados, temos
muita terra e capacidade produtiva; a única coisa que explica isso é a
incompetência de muitos líderes que não sabem governar para os pobres. Alberto
Fernández recebeu a dívida da presidência de Macri e então o povo argentino terá
que ser muito paciente. A pandemia fez o mesmo, mas acho que é possível que a
economia argentina se recupere, que se criem empregos e melhores salários para
que as pessoas sejam mais felizes.
Página
12 – É claro que você buscará a integração regional. Quais são suas expectativas
com o Grupo Puebla?
Lula
–
O Grupo Puebla tem um papel muito importante, mas acho que se os líderes
progressistas voltarem a governar nossos países, eles terão a chance de
recuperar o Mercosul, de fortalecê-lo, de fortalecer o Celac. Temos que
entender que temos um potencial produtivo extraordinário, por isso precisamos
construir parceiros para fazer bons acordos com a União Européia, com os EUA,
com a China, porque precisamos recuperar o que foi perdido em tempos de
pandemia. Vou tentar reconstruir o Mercosul e criar as condições para que se
cheguem a acordos econômicos que beneficiem os pobres da região, merecemos
recuperar no século XXI tudo o que foi minado no século XX.
Página
12 – O senhor vê a vitória de Xiomara Castro em Honduras como uma reivindicação
histórica, depois da solidariedade de seu governo ao presidente destituído
Manuel Zelaya?
Lula
–
Zelaya foi vítima de um golpe de Estado e dos interesses da elite; a escolha
agora de sua esposa é uma recuperação. Espero que ela tenha sorte, que ela seja
forte; Espero que o Congresso esteja disposto a ajudá-la. Porque é muito
difícil ter um congresso de oposição, que consegue a maioria para implementar
as políticas sociais necessárias para fazer Honduras avançar. No Brasil, por
outro lado, passamos por situações muito difíceis porque temos um genocídio que
não cuidou da economia, negligenciou as pessoas na pandemia, não cuidou do
crescimento econômico. O Brasil está passando por uma situação que achava que
não voltaria a passar. O Brasil já era muito melhor, o povo brasileiro precisa
ser feliz.
Fonte:
https://www.brasil247.com